Uma breve investigação, a partir de entrevistas e relatos, sobre a prática e o pensamento cinematográficos de um dos maiores cineastas da história.
Uma boa obra de arte é, a partir de certo ponto, um universo em si, independente de seu autor. No entanto, um aspecto frequentemente negligenciado pelos bons críticos é o impacto que o autor, sendo uma pessoa de carne e osso, exerce em sua obra. Sabendo que a arte é o fruto do estudo e do trabalho do artista, explorar como este entendia e vivia o seu ofício pode ser de grande importância para a crítica, que melhor retroalimenta a produção ao pensar também em termos de prática.
Stanley Kubrick — que fez apenas treze longas-metragens, dos quais, pelo menos, a metade é de importância inestimável para a história do cinema — era um homem reservado. “Não gosto particularmente de entrevistas”, declarou a Michel Ciment, cujo livro Kubrick é um dos meus principais guias na escrita deste artigo. A maior parte do que sabemos sobre quem Kubrick foi e o que ele pensou se dá por meio de algumas poucas entrevistas e de relatos quase sempre anedóticos de pessoas com quem conviveu. Mesmo assim, podemos esboçar algo.
Metódico e soberano
As histórias de como Kubrick era metódico e exigente com seus colaboradores são famosas e é bem comum ouvir coisas do tipo “Kubrick era um gênio, mas era babaca”. É sempre mencionado o quanto Shelley Duvall se estressou nas filmagens de O Iluminado, mas não se engane, como muitos, pensando que ele a queria estressada para obter uma atuação mais convincente ou mesmo que era uma perseguição misógina. Ele era muito exigente com todos os seus colaboradores (das grandes estrelas aos mais desconhecidos técnicos), que, incluindo Duvall, costumam dar o braço a torcer por ele. Surpreendentemente, grande parte não se limitava a tolerá-lo, realmente gostava dele enquanto pessoa. Afinal, um chefe rígido pode ser cansativo, mas ele não necessariamente está errado. Aparentemente, Kubrick também se via mais ou menos assim:
Nem sempre é divertido fazer um filme, se quer fazê-lo corretamente, pois você está sempre em conflito com alguém, mesmo implicitamente. [...] você sempre vê nos olhos deles um ressentimento quando lhes faz a menor observação.
[CIMENT, 1980]
A pergunta que muitos fazem (e eu também) é se ele precisava mesmo ser tão exigente para alcançar os resultados que buscava. Talvez não, mas pouco importa agora. Muito mais do que um método de trabalho, sua "obsessão" faz parte de seu estilo. Vejamos um pouco do que ele fala sobre estilo numa entrevista dada a Joseph Gelmis em 1969:
[...] o estilo de um diretor é, parcialmente, o resultado da maneira com que ele impõe sua mente às condições semi-controláveis que existem em um dado dia — a responsividade e o talento dos atores, o realismo do set, fatores de tempo, até o clima.
Voltando à entrevista de 1980:
[...] quanto mais você controla, mais evita que os outros o impeçam de fazer o que tem de fazer.
Todos os seus colaboradores trabalharam à exaustão, mas sempre menos do que ele. Cada pequena etapa e setor da realização de um filme deveria ser submetida à sua mente, de modo que ele poderia ter a liberdade para seguir perfeitamente o planejamento e também para improvisar. Tornando a realização do filme um jogo mental extremamente complexo, ele poderia trabalhar como o enxadrista que era desde criança:
Bobby Fischer ou Karpov não podem antecipar o fim da partida. [...] um determinado número de suas decisões se apoia na análise e outras, na “intuição”. [...] O xadrez lhe ensina, entre outras coisas, a controlar a emoção inicial dada por um movimento, à primeira vista favorável, e se dar tempo para analisá-lo. [...] No cinema, o xadrez lhe ensina a evitar os erros mais do que a ter ideias. Ideias parecem surgir espontaneamente, mas o verdadeiro problema é ter disciplina para analisá-las. [CIMENT, 1980]
O trabalho do diretor é, acima de tudo, filtrar tanto suas ideias como as de seus colaboradores. Quando perguntado por Gelmis sobre o papel do diretor, Kubrick respondeu:
Um diretor é uma espécie de máquina de ideia e de gosto; um filme é uma série de decisões criativas e técnicas, e é o trabalho do diretor tomar as decisões corretas com a maior frequência possível.
Forma e conteúdo, Eisenstein e Chaplin
Ao falar, na mesma entrevista a Gelmis, de seus estudos cinematográficos iniciais e de sua opinião sobre Sergei Eisenstein, Kubrick dá o que pode ser a chave para entender o cerne de sua visão teórica e prática de cinema:
A maior realização de Eisenstein é a bela composição visual de seus planos e a sua montagem. Mas, em termos de conteúdo, seus filmes são tolos, seus atores são duros e operáticos. Às vezes eu suspeito que o estilo de atuação de Eisenstein deriva de seu desejo de manter os atores enquadrados o máximo possível; eles se movem bem devagar, como se estivessem debaixo d'água. [...] qualquer um seriamente interessado em comparação de técnicas cinematográficas deve estudar a diferença na abordagem de dois diretores: Eisenstein e Chaplin. Eisenstein é todo forma sem conteúdo, enquanto Chaplin é conteúdo sem forma.
É claro que não existe arte sem forma, mas Kubrick não está advogando por isso. Em outra ocasião, ele até chegou a falar de Charlie Chaplin como alguém com “um estilo cinematográfico tão simples que era quase como I Love Lucy”. E, apesar da vagueza com que se distingue forma e conteúdo, ele está certo! Normalmente, Chaplin apenas põe a câmera na posição que mostra suas pantomimas mais claramente. Eisenstein inventa mil e uma posições nada óbvias de se colocar a câmera e mil e uma maneiras de montar suas cenas. O que Kubrick diz sobre os atores de Eisenstein pode ser percebido claramente em seus filmes falados Alexander Nevski e Ivan, o Terrível - Parte 1. A suma da comparação é: enquanto Chaplin adapta sua câmera aos atores, Eisenstein adapta seus atores à câmera.
Embora admitisse ter sido influenciado por Eisenstein, Kubrick não tinha predileção alguma por ele, mas tinha por Chaplin (especialmente por Luzes da Cidade, que figurou numa lista — enviada por Kubrick à extinta revista Cinema em 1963 — de seus dez filmes favoritos). Essa predileção sugere algo que outras declarações confirmam, como essa dada a Ciment em 1976:
Tenho a impressão de que se algo realmente acontece, pouco importa a maneira como vamos filmá-lo — o que é errado, claro! —, mas assim mesmo o que conta é o que os personagens fazem. Com certeza, é melhor mostrá-lo de maneira cinematograficamente interessante, mas, para mim, isso acontece com facilidade uma vez que a cena exista.
Kubrick, um dos cineastas mais sofisticados formalmente, prioriza o conteúdo. Por mais que possa parecer para alguns, sua perspectiva não é genérica e impensada. Ele não acredita que a forma é o "embrulho" ou mesmo o reflexo do conteúdo, mas que é sua consequência lógica e natural, assim como o topo de uma casa é para as suas bases. Portanto, ele não se opõe diretamente ao formalismo de Eisenstein, mas à tentativa de se construir uma casa com bases fracas.
As primeiras bases (ou abertura)
O cinema, como o xadrez, é um jogo de complexidades, em que muitas coisas estão acontecendo simultaneamente, mas devem ser organizadas e executadas com inteligência pelo jogador. É impossível pular etapas nesse jogo e esperar que vá dar certo. Para início de conversa, as peças de trás nem se deslocam se os peões não permitirem. É preciso começar o jogo com uma abertura e ir progredindo, rodada a rodada. A cada nova, sua mente tem mais e mais coisas para prestar atenção e é possível que você vacile e só preste atenção em algumas. Rodada a rodada, é preciso recalcular o jogo inteiro e imaginar sua versão mais completa possível para, então, fazer uma nova jogada. Quanto mais tempo o relógio te der para pensar, maior a chance de você se sair bem.
Vejamos como Kubrick enxerga as etapas, ou rodadas, da realização cinematográfica (aqui chamadas de “abordagens”):
A primeira abordagem do filme se dá quando começamos a escrever o roteiro; a segunda, quando ensaiamos — o que ainda faz parte da escrita, pois fazemos modificações no texto. E quando algo merece estar na tela, decido como filmar. [CIMENT, 1976]
Tendo em vista outras de suas declarações, pode-se concluir que isso é apenas um resumo. O jogo começa quando, após meses lendo vários livros despretensiosamente, ele lê um livro que lhe interessa (vale lembrar que só três de seus filmes não são adaptações literárias). Embora se deixe impactar pela obra como um todo, da forma mais natural possível, ele faz uma avaliação do livro em termos de conteúdo, porque é o que ele pretende manter no filme. A rodada só está finalizada quando ele esgotou todas as possibilidades e consegue visualizar uma obra inteira dali — no caso dessa rodada, o fato de já ter um livro inteiro nas mãos certamente facilita.
As primeiras complexidades do jogo são de difícil localização temporal, porque, quando decide sobre o que será seu novo filme, ele passa a pesquisar sobre o assunto. O nível de conhecimento que ele adquire sobre seus temas é quase tão famoso quanto o seu nível de exigência no set de filmagem. 2001 - Uma Odisseia no Espaço é um exemplo notável: a pesquisa começou muito antes do cineasta saber qual história iria contar. Segundo o livro de Michael Benson sobre a realização do filme, Kubrick começou apenas com a vontade de fazer uma ficção-científica, o que o levou a entrar em contato com muitas obras do gênero e a se tornar amigo de Arthur C. Clarke (cuja bibliografia Kubrick devorou). No entanto, a pesquisa sobre ficção-científica não poderia se limitar a conhecer bem a ficção: ele também se propôs a conhecer bem a ciência, lendo muitos livros e se informando vastamente com muitos cientistas respeitados (diga-se de passagem: no livro de Benson, há o relato de um curioso jantar com Carl Sagan). Essa foi uma das maiores pesquisas de sua carreira, só perdendo (de lavada) para sua famosa pesquisa sobre a vida de Napoleão Bonaparte — que, por motivos comerciais, nunca se tornou filme.
Tendo uma base já consolidada, ele passa a planejar a escrita do roteiro em si, organizando o que será mudado, o que será excluído e o que será mantido em relação à história que está adaptando. Conforme afirmou para Ciment em 1976, ele busca “possibilidades visuais interessantes” no drama literário; ou seja, o trabalho formal certamente já está presente aqui.
A escrita de um roteiro adaptado não é das tarefas mais difíceis para Kubrick:
Um roteiro é uma criação lógica. Ele não exige inspiração, como para escrever uma história. [...] Se você começa com uma história que existe sob seus olhos, você tem uma base bem sólida. [...] Você tem ao menos a certeza de que as pessoas se interessarão pelo que acontece. [CIMENT, 1972]
Após alguns meses de escrita, ele obtém a primeira versão do roteiro, mas continuará fazendo novas até o final da produção. É famosa a história de que Jack Nicholson desistiu de decorar com antecedência suas falas em O Iluminado porque sabia que elas seriam modificadas no dia de filmagem. Mesmo com Kubrick fazendo constantes reescritas, essa rodada do projeto termina com o filme praticamente todo calculado em sua mente e no papel, claro. A realização ainda requerirá novas rodadas, que farão com que, para o bem ou para o mal, o filme se transforme em algo bem diferente do que foi previsto nessa rodada.
Começa a pré-produção, a complexidade se torna ainda maior. Departamentos são criados, entram os produtores, procuram-se locações, confeccionam-se cenários e figurinos, escalam-se atores, além de vários outros processos que demandam tempo e levam Kubrick a repensar constantemente sua visão do projeto.
A realidade domina o processo
A liberdade que Kubrick foi conquistando para realizar seus filmes lhe deu mais tempo para cada rodada. Ele podia pensar e repensar suas decisões, mudar elementos importantes de última hora e até reverter essas mudanças quando achasse necessário. Isso, que só foi possibilitado quando o diretor já era um nome de peso na indústria, faz parte da fluidez que ele explica haver no seu trabalho de mise-en-scène. No caso, ele usa o termo para se referir ao trabalho de decupagem; isto é, ao trabalho de decomposição das cenas em planos, com enquadramentos, ângulos e movimentos de câmera:
Com poucas exceções, acho necessário guardar as ideias de mise-en-scène para o último momento e utilizar o cenário e a ação que você escolhe como base daquilo que quer filmar. [...] o mais importante [...] é ensaiar cuidadosamente uma cena e ter certeza de que tem algo interessante para filmar. Só depois você pode cuidar do “como”. O “como” deve sempre seguir o “o quê”. [...] Pouco importa se você pensou durante muito tempo em uma cena, se a preparou minuciosamente, quando chega a hora de filmar e os atores estão com os figurinos, você olha para o cenário, e se lembra das coisas que já fez, isso é sempre diferente de todos os planejamentos que você pôde fazer, de tudo o que pensava fazer. Normalmente você precisa retrabalhar inteiramente a ação e com frequência precisa mudar também o diálogo. [CIMENT, 1972]
Em 1976, ele volta a falar algo semelhante para Ciment:
[...] Então chega o momento terrível do primeiro ensaio no lugar onde vamos filmar. É sempre uma surpresa. Você precisa modificar os diálogos, abandonar algumas ideias e procurar outras.
Como eu disse, rodada a rodada, Kubrick busca mentalizar a versão mais completa possível de seu filme. Dessa vez, no entanto, o filme não está próximo de sua completude apenas na mente do diretor, mas na própria realidade. Kubrick está falando sobre chegar no dia da filmagem e ter a sua estratégia de jogo posta por terra porque o imaterial se materializou; o mundo de faz de conta se tornou mundo real. Ele chegou no set e viu um pedacinho da Inglaterra cuidadosamente transformado em Vietnã, pedaços de prédios em chamas e Matthew Modine fardado segurando um fuzil. O impacto da realidade é grande demais para ele não repensar sua jogada.
A economia kubrickiana
O trabalho de Kubrick demonstra que sua noção de conteúdo se assemelha à ideia de realidade do crítico e teórico francês André Bazin no que tange as percepções metafísicas. Para ambos, o trabalho do diretor envolve preservar e gerenciar a realidade da qual o filme se constituirá e à qual deverá, por meio da fotografia, restabelecer o encanto. Kubrick inicia e avança seu trabalho idealizando o resultado final, com o objetivo de que a realidade vista no set apareça fielmente na película. Esse trabalho demanda muito cuidado com a montagem, que tende a fragmentar a realidade.
No entanto, a montagem de Kubrick frequentemente dialoga com o formalismo soviético dos anos 1920, ao qual Bazin se opunha. Na entrevista a Gelmis, Kubrick enfatiza a montagem como elemento essencial do cinema: “é tão importante que é impossível superenfatizar”.
A complexidade com que Kubrick trabalhava lhe permitia ser simpático a perspectivas opostas. O erro de Bazin é absolutizar a realidade e o erro dos soviéticos é absolutizar a forma cinematográfica. Por mais que Kubrick valorizasse o conteúdo como base para a progressão de seu jogo, ele podia ver que tanto a montagem quanto a realidade são apenas partes de um tabuleiro bem maior.
A concordância com as duas visões, todavia, aumenta seu cuidado para com a montagem, que pode tanto fragmentar a realidade indevidamente quanto criar significados intelectuais e emocionais poderosos. A montagem está intimamente ligada à decupagem.
Vejamos o que ele fala sobre a decupagem e a montagem conjuntamente:
Tento ter um motivo para cortar. Se uma cena funciona bem de um determinado ângulo, e não há motivo para cortar, então não corto. Mas, em contrapartida, quando você corta, o efeito é bem maior. Em uma cena em que o elemento mais importante é a interpretação do ator, eu não corto até que a interpretação do ator seja valorizada de outro ângulo. [CIMENT, 1972]
Vale a pena fazer o exercício de imaginar quais cenas Kubrick pensou em sua decupagem com foco na atuação. De imediato, lembro da cena da discussão entre o casal interpretado por Tom Cruise e Nicole Kidman no começo de De Olhos Bem Fechados. Os cortes em si são bastante discretos, mas a progressão emocional da cena é acompanhada com perfeição pela decupagem, que eleva o conteúdo ao máximo.
Laranja Mecânica, como um todo, é o meu exemplo favorito por ser um dos mais variados e sofisticados formalmente. Vide a cena em que a gangue de Alex invade a casa do velho escritor: começamos com um plano estável e amplo que apresenta o escritor trabalhando em sua casa, um ambiente agradável e equilibrado. Um travelling suave para a direita revela sua esposa no que parece simultaneamente ser outro cômodo e outra parte do mesmo cômodo, mostrando que a casa é bastante integrada e, portanto, ainda mais agradável. Assim que a gangue entra nesse cômodo, começamos a ver tudo por câmera-na-mão e os planos que mostram de perto o escritor e a mulher dominados pelos delinquentes são filmados por lentes curtas, o que gera uma distorção visual.
Outra cena memorável (num filme em que todas as cenas são memoráveis) é a do espancamento do velho mendigo. Após só mostrar Alex em planos extremamente abertos e panorâmicos, Kubrick corta de um plano médio do mendigo caído no chão para um plano extremamente fechado no rosto do protagonista, só para vermos ele sorrir maleficamente e dizer: “And what’s so stinky about it?”. O corte nitidamente serve para mostrar um detalhe fantástico na atuação de Malcolm McDowell, mas não apenas. A abruptidão com que nossa visão do acontecimento se fecha naquele demônio em forma de gente é um choque e o fato de estarmos nos aproximando para vê-lo debochar do velho é repelente, mas Kubrick quer nos fazer passar por isso. É um dos cortes mais marcantes que já vi na vida.
Kubrick não faz nada se não tiver um bom motivo. Como Ken Adams, diretor de arte de Dr. Fantástico e Barry Lyndon, relatou a Michel Ciment: “com ele tudo tem que ser explicado racionalmente, mesmo se algo é resultado de seu instinto ou de seu talento”. Quanto mais motivos existem para um corte, mais ele tem significado emocional e intelectual. Se Kubrick não fosse econômico em sua montagem, ele a banalizaria. Economia não é cortar pouco, é cortar apenas quando for realmente necessário, quando o corte for agregar. Se os motivos para um corte são insuficientes, jamais se deve quebrar o transe da fotografia.
Por mais importante que seja o diretor pensar sua decupagem em termos de uma unidade que envolva todos os elementos do filme, pensá-la em termos de potencialização do conteúdo dramático não deve ser subestimado. Mais importante ainda: não são formas incompatíveis de se pensar a decupagem!
A narrativa do filme mudo
Se Kubrick dialogava tanto com o realismo de Bazin quanto com a montagem dialética dos soviéticos, não há porque imaginar que ele não poderia estender sua simpatia para o purismo de Chaplin e Hitchcock em relação ao cinema mudo:
A estrutura do filme mudo tinha uma característica única, que ficava bem longe do teatro e permitia uma enorme flexibilidade para contar uma história. [...] Mas quando o som chegou, os filmes tornaram-se peças de teatro e, no essencial, continuam a ser. [CIMENT, 1987]
Apesar de valorizar o cinema mudo, Kubrick não o tinha como uma arte essencialmente não-verbal, como era o caso de Hitchcock. Na verdade, ele via o verbal como parte da estrutura narrativa do filme mudo:
Custou caro ao cinema tornar-se falado: foi preciso, em particular, escrever como no teatro, até mesmo as cenas breves, enquanto no cinema mudo podia-se escrever simplesmente: “O tio de Billy”, e ilustrar essa cartela com um plano do tio de Billy consertando uma bicicleta na parte de trás da casa, e se passava para outra coisa. Havia uma escolha bem maior dos procedimentos narrativos no tempo do cinema mudo. [CIMENT, 1980]
Momentos de conteúdo “anti-cinematográfico” — como uma cena em que Billy apresentaria seu tio a um amigo só para sabermos que aquele é o tio de Billy — poderiam ser resolvidos com um intertítulo e uma ou duas imagens que o representassem. Isso permitiria ao filme se concentrar em cenas realmente cinematográficas, cenas cujo conteúdo tem maiores possibilidades dramáticas e visuais. Na mesma entrevista citada acima, ele distingue os dois tipos de cenas:
Tenho a impressão de que uma história teria um campo narrativo bem mais amplo se decidíssemos que algumas cenas só fossem ilustradas visualmente e outras fossem tratadas dramaticamente. Em todos os filmes, quase tudo é dramatizado e quase nada é ilustrado com mais leveza, apresentado com mais simplicidade. Isso só o cinema mudo realizou, e também os filmes publicitários na televisão.
Para se parecer estruturalmente com os filmes mudos, os filmes falados deveriam limitar suas cenas com pouco potencial cinematográfico à mera ilustração. Talvez o filme em que Kubrick melhor realizou o que ele acreditava ser a estrutura de um filme mudo tenha sido Barry Lyndon, seguido por Laranja Mecânica — dois filmes com memoráveis narrações em off.
A história de Barry Lyndon se desenrola ao longo de quase duas décadas e vários fatos importantes que aconteceram nesse período são apenas citados pelo narrador. Não à toa, muitas das imagens mais memoráveis do filme são dos personagens fazendo coisas cotidianas — como o tio de Billy consertando a bicicleta —, que serviam para ilustrar as informações apresentadas verbalmente.
Em entrevista para Ciment em 1976, Kubrick comenta o fato de que no livro que originou Barry Lyndon, o conflito entre o protagonista e o antagonista se resolve de modo burocrático e com pouca dramaticidade. Como vimos, não faria sentido ele dramatizar algo com pouco potencial dramático, mas também não faria sentido encerrar o filme sem dramatizar um clímax. Então, Kubrick veio com a ideia de substituir tudo por um duelo final: “era um meio ao mesmo tempo dramático e mais econômico”.
A primeira cena de Laranja Mecânica, talvez a mais famosa do filme, já é uma dessas cenas destinadas a ilustrar a narração em off, na qual Alex nos apresenta a si, aos seus comparsas, ao bar que eles frequentam e ao que eles mais gostam: “ultraviolência”. Cenas que merecem ser dramatizadas são as que têm esse potencial no próprio conteúdo, como a da invasão à casa do velho escritor e a da apresentação em que Alex é humilhado a fim de comprovar-se a eficácia do tratamento Ludovico.
A visão de Kubrick sobre o cinema mudo é única por ter menos a ver com filmes não-verbais e mais a ver com uma estrutura narrativa em que o verbal possibilita a concentração de cenas com um maior potencial cinematográfico.
Vá ver um filme
Por mais opostas que sejam, uma análise que trata o cinema apenas pelo impacto que ele exerce sobre o público e a análise que acabei de conduzir se assemelham pelo seguinte fato: é literalmente impossível fazer uma análise completa. Uma obra de arte é o que ela é por causa de incontáveis fatores. Enumerá-los é tão fácil quanto enumerar os fatores que nos fazem ser quem somos. Embora viver em auto-exame seja importante, viver é mais importante. Críticas, artigos e entrevistas servem para aprendermos mais sobre o cinema, para desenvolvermos gosto e opiniões inteligentes — para que, quando um filme nos deixar embasbacados, tenhamos alguma pista de quais podem ter sido os motivos. Muitos críticos moldam a nossa visão do cinema, mas não há boa crítica que substitua um bom filme. Aprender um pouco sobre como grandes diretores viam o cinema certamente influencia a forma como o vemos, mas assistir a grandes filmes influencia muito mais.
Rodrigo Heber
Cristão, brasiliense, protótipo de crítico e aspirante a cineasta. Tenho uma página de cinema no Instagram (@quadrocine) e escrevo sobre quase todos os filmes que vejo no Letterboxd (rodrigoheber).