O materialismo histórico-dialético, a ‘eztetyka da fome’ e as mitologias do sertão brasileiro em restauração de alta qualidade do ‘nordestern’ antropofágico de Glauber Rocha
Em 1928, foi publicado um dos mais importantes textos da arte nacional, o Manifesto Antropofágico, que, em linhas gerais, propunha que a cultura brasileira é proveniente de “canibalismos culturais” perante as culturas estrangeiras, em direção a “‘devorar’ a cultura e as técnicas importadas e provocar sua reelaboração com autonomia, transformando o produto importado em exportável.” (IMBROISI, Margaret; MARTINS, Simone. 2023). Tudo era comestível para a criação brasileira: do Reino Unido (“Tupi or Not Tupi”)¹, aos EUA, por toda a Europa, aos ameríndios, afrodescendentes e asiodescendentes. No ano de 1964, o filme mais antropofágico do cinema nacional era lançado: Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Em 2022, estreia a restauração em 4K da obra, a qual pude assistir, agora, em 2023, no mais tradicional e resistente cinema de rua do Distrito Federal, o Cine Brasília. Graças a esta oportunidade, surgiu o desejo de falar sobre Deus e o Diabo nesta edição tão especial da Singular que, entre outras coisas, celebra também um outro cineasta importante na trajetória de Glauber e que nos deixou recentemente, Jean-Luc Godard, que inclusive está entre os engolidos pela antropofagia cinemanovista do autor brasileiro. Com isso, voltemos a ela.
Para tanto, é preciso retroceder ainda mais um pouco na história do nosso cinema: alguns anos antes do lançamento da obra seminal de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos lançava seus dois filmes definidores do cinema moderno brasileiro: Rio, 40 Graus (1955) e Rio, Zona Norte (1957); que herdavam o modernismo neorrealista da Itália. Glauber e os cineastas do Cinema Novo como um todo beberam desta fonte para representar a fome latinoamericana. Manoel (Geraldo Del Rey), o vaqueiro, é um homem comum que, diante da fome e da miséria, encontra apenas a violência como manifestação de sua existência colonizada. Sem dinheiro nem gado, diante de um latifundiário que rouba ainda mais daquilo que é o sustento da vida de Manoel, sua única resposta possível é a peixeira. Não como um primitivo, como diria Glauber, pois "o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência de um faminto não é primitivismo" (ROCHA, Glauber. 2004, p. 63-67).
É em seu manifesto, Eztetyka da Fome, que Glauber afirma: "Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é a nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida. De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais pelos produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria." Tal singularidade é tão estrutural nos filmes de Glauber que, preocupado em filmar as figuras famintas e suas existências, é comum que o diretor passe longos momentos captando a figura de um vaqueiro e sua esposa em seu casebre rural, enquanto filma velozmente os acontecimentos chave de seus roteiros, quase que na ânsia de apresentá-los logo para poder voltar às imagens que realmente importam. Isto, porque, "é uma questão moral que se refletirá nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe que observar, na Filosofia" (ROCHA, Glauber. 2004, p. 63-67).
Contudo, se nos momentos de planos mais longos Glauber consegue engolir e regurgitar à brasileira o modo de filmar dos neorrealistas italianos, é nestes momentos de maior velocidade que o diretor remete ao dinamismo da Nouvelle Vague, como os jump cuts de Godard em Acossado (1960), ou à práxis da montagem soviética eisensteiniana, utilizando do grau métrico da montagem (EISENSTEIN, 1949) que diz respeito à utilização da duração de um plano para construir tensão (segundo Eisenstein, quanto menor a duração do plano, ou seja, mais cortes, maior a tensão gerada na montagem). As referências antropofagizadas não vêm atoa, na medida em que Glauber Rocha é provavelmente um dos maiores marxistas do cinema: enquanto utiliza do realismo como ferramenta materialista-dialética na estética, ao mesmo tempo parte da montagem como instrumento intelectual para também comunicar com as tendências populares dos novos cinemas, que rompiam com as sintaxes anteriores e conservadoras da linguagem, bem como resistiam ao mercado, tal como era a própria Nouvelle Vague, chave para a existência do Cinema Novo brasileiro.
Mas se a forma é marxista, é porque esta é a manifestação final do conteúdo de Deus e o Diabo na Terra do Sol, que está permeado por teoria revolucionária. Se Marx diz em sua "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel" que: "a miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo. A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola" (MARX, Karl. 2013, p. 145). Então, Glauber filma um homem pobre que espera pelo milagre vindo dos céus, que procura Deus na Terra mas acaba encontrando o Diabo na face de Deus em todas as suas tentativas, e ao fim é jogado à fragilidade de ser homem num mundo que o pertence mas que foi entregue a Deus e ao Diabo, sempre sob a égide da esperança, que paralisa a classe trabalhadora na espera da eternidade. Diante das promessas de Sebastião, Manoel encontra um infanticida fanático. Sob Corisco, o diabo de Lampião, encontra um homem que, levado desde à infância à fome, e, agora, sem seu bando, sem nada, tem na violência, justificada por ele pela religião - onde há de encontrar a salvação final -, a manifestação de sua miséria. A “espada de São Jorge”, que Manoel busca em Sebastião e Corisco em Manoel, nada corta, apenas separa o camponês de sua realidade material - coisa que apenas Rosa, esposa de Manoel, verdadeiramente compreende ao longo de todo o filme, tentando trazer seu marido para a realidade direta de sua condição.
E, também, sempre ao lado de Rosa, a partir do momento que ela e Manoel se juntam ao bando de Corisco, está Dadá, cangaceira. As duas não trocam um diálogo, mas estão a todo momento juntas no plano, com olhares de compreensão, numa relação de sororidade que demonstra como ambas somente são capazes de compreender sua condição: enquanto Manoel e Corisco, homens, encontram ainda na religião e na violência, socialmente justificada e reforçada em relação a seu gênero, as duas mulheres que também protagonizam a película, enquanto negadas na estrutura social capitalista por sua condição de trabalhadoras rurais, mas também simbolicamente excluídas da doutrina e da mística religiosa, enxergam com clareza a miséria de sua condição. Daí, a violência que nelas se manifesta, ainda sendo a de um faminto, direciona-se, também, de algum modo, ao rompimento radical com estas estruturas que as circundam - tal como o assassinato de Sebastião pelas mãos de Rosa, após o líder religioso assassinar um bebê para “purificar” a esposa de Manoel. Embora Manoel assassine o latifundiário ao início do filme, este é um crime sobretudo passional na medida em que a irracionalidade é a única manifestação possível para Manoel diante da exploração absoluta e absurda de sua miséria. Contudo, existe ainda na violência de Rosa algo menos irracional, que se direciona a romper com a metafísica tanto no campo simbólico quanto literal (eliminando aquele que cega seu marido e outros trabalhadores), voltando-se então para a materialidade.
Na materialidade, encontramos o sertão nordestino em sua vastidão imensa, marcada pelo calor e pela seca. E neste espaço, há também a referência mais capciosa de Glauber Rocha: os westerns americanos. Mas não era este um filme anti-imperialista? Ora, sim, mas tal como Marx inverteu a dialética hegeliana idealista, e Eisenstein o fez com a montagem griffithiana, Glauber virou de ponta cabeça o western de Raoul Walsh, John Ford e Howard Hawks no uso narrativo do espaço, como afirmado pelo próprio em entrevista a Michel Ciment e Piero Arlorio, em 1968:
"(...) pode-se fazer um filme de western ou de cangaço tomando lições de Hawks ou de Ford mas invertendo o conteúdo e forma: isto é a antropofagia estética."
(Glauber Rocha em entrevista à Positif n° 91, janeiro de 1968)."
Glauber encontra nos grandes diretores do western americano, sobretudo, uma solução para o problema de filmar o sertão: é com o uso de grandes angulares em alta profundidade de campo que Glauber nos permite enxergar a vastidão da seca e da miséria num espaço abandonado pelo Estado, onde o único bote salva vidas parece estar na violência dos cangaceiros ou na eterna promessa religiosa. Este uso narrativo do espaço, no entanto, somente pode ser plenamente assimilado, agora, com a restauração em 4k do filme. Visto que as cópias disponíveis no YouTube ou em um ou outro serviço de streaming e mesmo nos torrents pela internet não tinham uma altíssima qualidade (e que não é exatamente comum ver este filme sendo exibido em qualquer cinema) a possibilidade de assistir a Deus e o Diabo na Terra do Sol em tão alta resolução é a possibilidade de enxergar até o fim do quadro, até o limite do frame, e ver como toda a composição está preenchida pelo calor, pela seca, pelo abandono e, por fim, pela fome que se espalha neste espaço de nordestern.
Contudo, é justamente pela possibilidade de enxergar as imagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol numa tela e resolução dignas de sua grandiosidade, que como nunca é possível ter um encontro com estas certas imagens que jamais poderão ser traduzidas em palavras, sobretudo no cinema antropofágico-mitológico-alegórico de Glauber Rocha. Seguem imagens que, infelizmente, estão reproduzidas na qualidade inferior disponível nas cópias pela internet:
O diabo habitando uma capela por entre as sombras:
Deus e o Diabo duelando no rosto de um messias infanticida:
A morte beija Corisco:
Lampião, o santo guerreiro, e Corisco, o Diabo de Lampião, o Dragão da Maldade, na cruz da espada:
A dualidade no coração do sertão por entre um pedaço de madeira:
“Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência. A mendicância, tradição que se implantou com a redentora piedade colonialista, tem sido uma das causadoras de mistificação política e de ufanista mentira cultural: os relatórios oficiais da fome pedem dinheiro aos países colonialistas com o fito de construir escolas sem criar professores, de construir casas sem dar trabalho, de ensinar ofício sem ensinar o analfabeto. A diplomacia pede, os economistas pedem, a política pede: o Cinema Novo, no campo internacional, nada pediu: impôs-se a violência de suas imagens e sons em vinte e dois festivais internacionais.”
(ROCHA, Glauber. 2004, p. 63-67).
¹ANDRADE, O. Manifesto Antropofágico. Revista de Antropofagia, Ano I, No. I, maio de 1928.
BIBLIOGRAFIA:
ANDRADE, O. Manifesto Antropofágico. Revista de Antropofagia, Ano I, No. I, maio de 1928.
IMBROISI, M; MARTINS, S. Manifesto Antropofágico. História das Artes, 2023. Disponível em: <https://www.historiadasartes.com/nobrasil/arte-no-seculo-20/modernismo/manifesto-antropofagico/>. Acesso em 18 Jul 2023.
MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo, SP: Boitempo, 2013.
ROCHA, G. Revolução do Cinema Novo. São Paulo, SP: CosacNaify, 2004.
Esse texto faz parte de A TELA INQUIETA, a 4ª edição da Revista Singular. Para mais textos clique aqui e para conferir mais do trabalho do autor clique abaixo.
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