Em resumo: com uma ou outra coisa brilhante, foi um ano morno.
A verdade é que para uma crítica de cinema eu não opero tão bem quanto deveria. Não acompanho os lançamentos, não vou a cabines de imprensa e tenho preguiça da grande parte dos festivais. Para piorar, sou mais ranzinza do que gostaria e acabo por censurar, constantemente, filmes contemporâneos da minha lista. Daí me rendo aos filmes que já são bons há 80, 50, 30 anos. Às vezes penso até que ao agregar uma visão contemporânea sobre um recorte histórico, mesmo os filmes ruins me parecem bons. Ou será que tivemos um maior número de boas produções circulando há poucas décadas atrás do que temos hoje em dia?
Não sei bem se por gosto pessoal, mas não gostei de 2023. Também não concluí que esse ano tenha sido “um ano água com açúcar” sozinha. Então reuni alguns tópicos de conversas sobre o cenário “audiovisual” do ano passado com amigos cinéfilos, minha mãe, cineastas e gente que não gosta muito de cinema.
O primeiro que me chamou atenção foram as cinebiografias ou filmes com tom biográfico. Poucos dias atrás, enquanto escolhia um filme para ver com minha mãe, ela comentou sobre “só ter filme sobre gente” em 2023. Daí comecei a reparar na quantidade de filmes blockbuster sobre comunidades, famosos e empresários que saíram para streaming e cinema no Brasil. Nem o Scorsese escapou nessa maré biográfica, apesar de ter nos abençoado com mais um bom filme. Além dele, a péssima tentativa de desculpa da Greta Gerwig para a mãe dela e a coisinha sem sal que foi Oppenheimer, sendo esses dois últimos o spotlight de marketing do ano. Quando você vende bem, você vende mais.
Me pergunto se a tara por biografias é resultado ou motivo de uma falta imaginação é generalizada, digo isso como pessoa que se diverte com franquias baratas e sci-fi ruim da década de 80, mais repetitivo que isso que não dá pra ser. Percebi que mesmo o cinema “barato” e “tanto faz”, que carinhosamente apelidei de “produções Netflix”, ficou rodando em círculos e refazendo as mesmas histórias sem qualquer distinção. Se o streaming já era um fastfood de cinema, agora é o Subway. Tudo com o mesmo gosto, pois nem o filme mais imbecil possível do meu almoço foi bom em 2023, até para esses filmes foi um ano ruim. Para uma pessoa que vê filmes quase diariamente, sinto que passei o ano sem sentir muita coisa, talvez por falta de filmes novos bons chegando até mim de modo geral ou por um avanço de quadro depressivo. Nem mesmo na minha bolha cinéfila do Letterboxd percebi tanta agitação durante o ano de 2023 sobre filmes de outros circuitos que não os de grandes festivais ou blockbusters.
O que costuro com uma outra conversa que tive com um amigo, que vê mais filmes do que qualquer outra pessoa que eu conheço aliás, sobre essa movimentação e sobre o acesso aos filmes bons de 2023: ele me falou que é preciso “escavar” esses filmes todo ano quando eu repliquei que geralmente me rendo ao cinema não contemporâneo por conforto e medo de aumentar a bagagem de frustrações com o cinema. E foi engraçado perceber que tenho preguiça de fazer esse trabalho de “curador” ou “caça talentos” com filmes atuais, mas me divirto como arqueóloga em busca de filmes antigos. Apesar de realizar a mesma ação, a sensação é diferente. Escavar filmes antigos é dissociativo e altamente vicioso, sinto certa realização quando termino um filme ótimo que nunca tinha ouvido falar e já existe há mais tempo que a minha avó. Tem uma nostalgia de algo que nunca vivi envolvida no processo. Mas escavar filmes contemporâneos, coisa que já fiz, é necessário e chega a dar um sabor muito doce na boca quando encontramos aquele filme gostoso de assistir e que nos deixa pensando por uma semana inteira ou mais. Senti muito esse doce com filmes que foram para os circuitos de festivais e poucas salas de cinema de 2019 a 2022. Sinto falta disso.
O que me leva a pensar na distribuição dos filmes e na situação das salas de cinema no Brasil atualmente. Se 2023 foi um ano em que tivemos maior aderência de cineastas que se recusaram a lançar seus filmes no streaming antes do cinema, graças a deus, então é preciso observar também quais condições físicas e logísticas de distribuição que o nosso país tinha para aguentar essa bomba. Afinal, não basta esperar querer sentir tesão pelo cinema no século do streaming, tem que morar no terceiro mundo também.
Uma outra conversa recente me fez pensar mais sobre a complexidade do acesso ao cinema e filmes de qualidade no Brasil. Como citei acima, tivemos menos filmes com contrato para lançamento por streaming, isso depois de muita discussão e manifestações duradouras de 2022 a 2023 – como a greve dos roteiristas. Apesar de ser uma situação positiva a longo prazo, especialmente com diretores batendo o pé para que seus filmes passem nos cinemas, isso não chega no Brasil tão facilmente. Com poucas salas de cinemas de shopping – praticamente o único tipo que temos atualmente – o Brasil tem cerca de 3mil salas em funcionamento, 10% do número de salas dos EUA, por exemplo.
Então ficamos reféns de uma ou duas grandes empresas de cinema – o que já facilita a cobrança de preços inacessíveis para a maior parte da população – que têm contratos com as distribuidoras de certas produtoras, em grande maioria estadunidenses, que demandam que o filme da sereia barbuda passe em três salas diferentes em horários próximos durante o dia para evitar concorrência, sendo essas três salas 75% do estabelecimento, um exemplo. Como isso acontece? Há um estudo de interesse do público brasileiro sobre uma sereia barbuda? Não. Resultado: a sereia barbuda não dá público e os cinemas buscam filmes que estão sendo comentados e as poucas distribuidoras desses filmes no Brasil que trabalham com eles, como foi o caso do novo filme do Gojira – assunto sensível, aliás. E será o caso de O Menino e a Garça no final de fevereiro, filme que já estava sendo divulgado nas redes em dezembro de 2023 e está nas salas de cinema do Peru desde o começo de janeiro.
Daí, volto a pensar naquela agitação de filmes fora dos grandes circuitos, pois ela foi ocorrer agora, no começo de 2024, por diversos motivos: distribuição falha nas salas de cinemas brasileiras, cineastas aproveitando melhor o tempo para lançamentos próximos ao Oscar. Enfim, pelos mais diversos motivos, o cinema de 2023 parece ter ganhado vida do final de dezembro de 2023 a fevereiro de 2024. O tempo do cinema atual para o brasileiro parece, cada dia mais, fazer parte da linha do tempo de aniversários bissextos.
Mas tenho certeza, apesar de tudo, que ainda há cineastas nacionais e internacionais ótimos e até consigo nomear vários grandes e alguns nomes menos conhecidos de memória. No entanto, os que eu não conheci ainda estão presos em outros países sem distribuição para o Brasil – ou mesmo aqui –, em circuitos de festivais, ou nem isso. Estão com filmes gravados em pen drives, película e fitas na gaveta do quarto, pois o sistema em que vivemos é muito infeliz para essa arte que tanto amamos – e para o todo o restante da vida também. Desafortunadamente, tenho uma visão bastante pessimista sobre o futuro do cinema, pois sendo, desde seu princípio, uma arte primariamente comercial, sob as leis do mais vil sistema econômico, não nos é permitida a distribuição de renda para artistas, mas para grandes produtoras e investidores do ramo. Assim, é preciso se esforçar um pouco mais para não deixar esses safados vencerem, escavar mais produções contemporâneas e escrever\falar sobre elas – aqui falo mais sobre minhas obrigações.
Por fim, percebo que, no Brasil, a minha geração e as mais novas estão procurando por filmes mais independentes e brincando de arqueólogos também, especialmente entre as décadas de 60 e 70 – embora eu não saiba exatamente o que motivou o interesse por esse período, chuto que o cinema de gênero faça parte. Isso é muito positivo, especialmente porque alimenta o tesão e o interesse pelo cinema como uma característica dessas gerações. Seria a minha geração a retomada pelo tesão pelo cinema? Já falei muito sobre o tesão no fazer cinematográfico, na criatividade, na paixão e na vontade. Transar sem tudo isso é ruim, imagine então ver um filme que não tem nada disso? É broxante. E me parece, pelas produções e gerações anteriores, que quanto mais se estimulava esse tesão pelo fazer, o tesão por consumir cinema também o alimentava e vice e versa.
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