Pobres Criaturas desafia a questão do Belo na era contemporânea, celebrando a estranheza como símbolo de liberdade e questionando a busca pela verdadeira individualidade.
Na filosofia dos grandes pensadores gregos, como Platão e Aristóteles, a questão do belo desempenha um papel crucial, influenciando suas visões éticas, políticas e estéticas. Em O Banquete, Platão associa o belo à sua teoria das Ideias ou Formas, propondo que o verdadeiro belo é uma Forma transcendental além do mundo sensível. Ele argumenta que a beleza física é apenas um reflexo limitado desse belo verdadeiro, acessível apenas através da razão e da contemplação. Na República, Platão estabelece uma conexão entre beleza e justiça, sugerindo que um estado justo é, por natureza, belo, e que a harmonia e ordem são elementos cruciais da beleza, tanto física quanto moral. Se considerarmos a ideia do belo apenas como o correto e a aplicarmos no campo artístico atual, a concepção do Belo assume um formato padronizado, configurando-se de certa forma como uma sucessão de ordens preestabelecidas. Em outras palavras, a beleza se torna um senso comum e uma idealização, onde o que é considerado estranho, diferente, ou até mesmo irracional é proclamado como feio e não-artístico. Para muitos, a boa e bonita arte é aquela que segue bons costumes, possui estruturas lineares e, principalmente, é realista. Diante disso, o "esquisito" ressurge como um símbolo de liberdade. É “somente” no "feio" que é concedida a existência, o pensamento e a ação livres das restrições impostas pela definição de beleza (dos dias atuais). Pobres Criaturas, portanto, adota essa contraposição ao belo contemporâneo, transformando-se em uma narrativa rica em estranheza e, consequentemente, liberdade.
Essa autodeterminação não se limita apenas à trama da história contada; ela permeia toda a mise-en-scène. Cada aspecto do filme, desde a postura de Emma Stone diante da câmera — como dançar de forma “diferente” — até a condição física do Dr. Godwin (Willem Dafoe) e suas bolhas de arroto, contribuem para a atmosfera de estranheza. Pobres Criaturas não se conforma aos moldes, buscando constantemente a liberdade de ser e de se expressar. Essa liberdade se manifesta nas escolhas: de um diretor que opta por criar um mundo fictício, quase um universo dos sonhos, e de uma personagem, Bella (Emma Stone), que, apesar das tentativas de aprisionamento, desfruta do poder de escolher – ser diferente e ultrapassar a moralidade convencional. Pobres Criaturas celebra a liberdade da mulher em relação aos seus desejos, corpo e escolhas. Mesmo que, por vezes, essas escolhas não se encaixem nos critérios socialmente aceitáveis, Bella desfruta do livre arbítrio. Num contexto social em que a norma impõe à mulher o papel de servir e obedecer, aquelas que se distanciam desse papel tradicional são comumente rotuladas como feias e alvo de injúrias. Nesse cenário, a estranheza e a “feiura” emergem como elementos que, de fato, representam a própria liberdade.
Não por acaso, o senso comum muitas vezes representa uma ideologia dominante e conservadora, que observa o mundo através de uma lente que delimita uma fronteira entre o correto e o incorreto, ou seja, entre o belo e o feio. Embora Pobres Criaturas não se destaque como o filme mais peculiar ou inovador de Hollywood (ou mesmo dentro do repertório de Yorgos), ele representa uma expressiva autonomia artística. Assim, de maneira irônica, Pobres Criaturas conquista sua própria beleza particular, autoral e pessoal. Seja nos exageros visuais como nas cores vibrantes, nos cenários expressionistas que lembram bastante o cinema-teatro de Georges Méliès, na fantasia abstrata dos efeitos de CGI — que é um dos mais interessantes visualmente no cinema atual — ou na habilidade de Yorgos Lanthimos em trabalhar com os diferentes tipos de lentes e enquadramentos, o filme desafia as expectativas da perfeição. A liberdade presente em Pobres Criaturas transcende os ideais, incorporando elementos cênicos, artísticos, morais, femininos e sexuais.
É intrigante como o filme de Yorgos Lanthimos desafia todos os pensamentos conservadores de uma sociedade que valoriza uma estética artística puritana. No cenário atual, o espectador estabelece que o bom cinema precisa se aproximar cada vez mais da realidade como havia mencionado, e que cenas de erotismo são consideradas desnecessárias. É nesse rompimento que Pobres Criaturas mergulha, rejeitando esse puritanismo que em nada reflete a verdadeira liberdade. Observar uma mulher explorar seu corpo, testar seus próprios limites, cometer erros e acertos é expor o espectador ao "feio" – ou, como eu prefiro chamar, ao belo singular. A câmera de Yorgos pode parecer invasiva na vida de Bella Baxter, mas ela jamais a aprisiona; é como se Bella nos permitisse testemunhar sua própria jornada. Estamos diante de uma liberdade que talvez não possuamos, encarando o que, provavelmente, desejamos – viver conforme nós mesmos, de acordo com nossas próprias decisões. Mesmo que essas escolhas nos conduzam a destinos desafiadores, como no caso de Bella, ainda assim detemos o poder de escolher. Ao concluir Pobres Criaturas, o espectador, eu e você inicialmente experimentamos a contemplação, para logo em seguida racionalizarmos e refletirmos sobre a possibilidade de sermos livres, diferentes e peculiares, assim como nossa querida Bella Baxter.
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