Horror em três atos: o cinema de Jordan Peele
- Adam William
- 11 de ago. de 2023
- 11 min de leitura
A reimaginação do horror nos três atos da obra cinematográfica de Jordan Peele

Um dos aspectos mais fascinantes do terror é como o gênero é aberto e flexível para que novos autores surjam e criem obras fascinantes a partir das mais diversas ideias possíveis, não importa quão piradas essas ideias soem. E quando um autor como Jordan Peele decide brincar com o gênero, não é para fazer algo menor que um marco: com experiências em atuação e o seriado de humor Key and Peele no currículo, ele veio a fazer sua estreia na cadeira de direção com Corra! em 2017. A obra não apenas caiu no gosto do público e crítica como arrematou para Peele — que além de dirigir, roteirizou e produziu o filme — um Oscar de Melhor Roteiro Original, gravando o nome do diretor na história do cinema americano, não apenas por colocar Peele na mesma prateleira de outros grandes roteiristas, mas também por ser o primeiro negro a ganhar a estatueta nessa categoria.
E não para menos, o diretor repetiu o ciclo de expectativa e reconhecimento com seus filmes posteriores, mesmo aqueles em que atuou apenas como produtor, como é o caso do impactante Infiltrado na Klan (2018), de Spike Lee. Na direção, Peele entregou novas provocações e pesadelos com Nós e Não! Não Olhe!, obras que apesar de trazerem a identidade clara do diretor, se mostram surpreendentes e compõem uma filmografia ainda enxuta, mas já muito fascinante. Essa filmografia de três atos — até então — é cheia de particularidades, com o diretor usando de muita crítica, acidez e criatividade para elaborar um show de horrores que aborda o lado mais podre da sociedade, entretendo e provocando na mesma medida. É uma receita que envolve um humor quase sádico, um horror afiado e uma paixão pelo cinema que pode ser reconhecida em filmografias de grandes diretores, de Steven Spielberg à Quentin Tarantino.
Já provando ser mais do que apenas uma “promessa” da nova geração do horror, Peele também foi um dos diretores dessa nova geração a se destacar com a fórmula do gênero que busca uma catarse através do medo. Corra! encaixotou o racismo estrutural em um roteiro esperto e faz do susto, da tensão e do medo uma catarse, tornando a sensação do protagonista em uma experiência sensorial mais universal, de forma que o espectador que nunca precisou lidar com uma situação de racismo — ou seja, o espectador branco — consiga entender melhor o sentimento que permeia a narrativa da obra.
Isso é algo que fica claro na forma como a primeira e a última cena da obra funcionam para causar um desconforto completamente intenso sem precisar recorrer a situações gráficas ou clichês. O tom da obra foi adotado por outros filmes como O Homem Invisível (Leigh Whannell, 2020) — que fez algo parecido, mas transformando uma situação de relacionamento abusivo em cinema de horror — e até o recente O Menu (Mark Mylod, 2022).

Ato I: Corra!
Jordan Peele é um diretor que não pretende esconder suas intenções. E isso vale tanto quando se trata da forma que ele quer abordar os aspectos sociais na sua obra — como já dito, Corra! encapsula muito bem no roteiro o que o diretor quer falar sobre racismo estrutural — como sua paixão pelo cinema, que como um espelho da sociedade, tem uma alta dose de culpa quando o assunto é a maneira que profissionais e personagens negros foram tratados em todos esses anos em que o cinema é cinema.
Assim, é divertido notar como após a cena de introdução do filme, Peele nos apresenta o protagonista, Chris (interpretado primorosamente por Daniel Kaluuya) enquanto o personagem se prepara para fazer a barba. A primeira vez que o vimos, ele está passando o creme de barbear pelo rosto em uma cena que remete diretamente à uma prática — racista do cinema — o ‘blackface’, quando atores brancos pintavam o rosto de preto — com algo que soa apenas como um detalhe, mas que ganha novo significado quando o espectador já conhece a trama do filme. É sagaz e com uma ironia precisa.
O horror de Corra! não é algo óbvio justamente pela construção dada costurada a uma ironia que é desconfortável por sabermos como as situações mostradas — mas não necessariamente faladas — são próximas de nós, a exemplo da sequência envolvendo um acidente na estrada e o indagamento de um policial a respeito de Chris — que não estava ao volante do carro. Quando perguntado sobre o filme ser um drama ou uma comédia — devido sua indicação no Globo de Ouro —, Jordan Peele respondeu que seu filme “é um documentário”. Aparando as devidas arestas — do horror surrealista —, não há muito que separe a obra de situações vistas aos montes no dia-a-dia. É daí, então, que Peele extrai o melhor de seu filme: criando uma tensão palpável em situações aparentemente “inocentes”, como as interações de Chris com a família da namorada, desde um jantar com os pais até as conversas “desagradáveis-mas-nem-tanto” com o cunhado.
A construção do horror por Peele é facilmente notado em dois aspectos-chaves do filme: o trabalho de câmera, a partir do direcionamento dos olhares — impondo o olhar de Chris direto ao espectador, por exemplo — e a tensão constante vinda das situações mais simples e familiares. O pontapé inicial do filme — conhecer os pais da namorada — já é, por si só, uma situação propícia para gerar conflitos — Corra! é quase uma versão subversiva e assustadora de Adivinhe Quem Vem Para Jantar, de 1967 — e que pode ser bastante incômoda. Daí então, a tensão crescente pela forma que os pais e o irmão de Rose (Allison Williams) tratam seu namorado, Chris, faz com que a escalada do desconforto se torne, pouco a pouco, um filme de horror.
Perspectiva, em todos os sentidos da palavra, também é um fator importante para tornar Corra! a experiência que é. Desde o olhar sufocante de Chris — uma das imagens mais lembradas da obra — até os olhares que denunciam os personagens, sejam eles as vítimas ou os algozes. O olhar de Georgina (Betty Gabriel) derramando uma lágrima — outra imagem bem marcante no marketing do filme —, ou o do personagem de Lakeith Stanfield após a sequência da foto, nos trazem novamente para este cenário de desconforto, estranheza e medo, que serve mais do que bem para o horror construído nas entrelinhas pelo diretor.
A perspectiva, em si, traz também esse peso do preconceito, como a sequência no primeiro ato que envolve Chris e Rose lidando com um policial após se envolverem em um acidente. O tratamento dado à Chris pelo policial contrasta com a sequência final, onde a presença de uma simples sirene é o suficiente para colocar o espectador em estado de alerta — e subverter o sentimento segundos depois. Ao mesmo tempo, as sequências envolvendo o “lugar profundo” — que diminuem o quadro e sufocam personagem e espectador ao tornar o frame em algo claustrofóbico — nos impõem a sensação de descontrole e subordinação, diante de uma cenário que, literalmente, oprime.
E quando Chris olha diretamente para a câmera, para o público — em momentos que podem ser interpretados como uma bem orquestrada quebra da quarta-parede —, nós enquanto espectadores ficamos restritos à olhar de volta, de maneira impotente, não importa nossa simpatia pelo personagem. Enfim, o horror de Corra!

Ato II: Nós
Já cercado pela expectativa gerada por Corra!, Peele realiza em Nós uma prova de que seu cinema, embora reconhecível, está longe de ser algo previsível. Seu segundo ato de horror é uma narrativa diferente da anterior que, embora ressoe alguns temas já vistos antes, trabalha o horror de uma maneira muito diferente e intrínseca ao espectador. Em outras palavras, Nós parece almejar atingir o espectador de uma forma diferente de Corra!, permitindo não apenas um número maior de leituras sobre a obra, mas também tornando a obra mais divisiva que a anterior.
O horror é algo muito subjetivo, já que depende do espectador para funcionar em sua totalidade — ainda que alguns medos sejam mais comuns, o que me assusta não necessariamente irá te assustar, ou vice-versa — e em Nós, Peele se propõe a uma série de provocações que vão desde conceitos filosóficos — o mito do “doppelganger”, do duplo —, mas também à questões mais inerentes ao público, como o conceito da vida perfeita e do sonho americano. O fato é que quanto mais perfeita é uma vida, mais existe um medo — ainda que implícito — de perder aquilo tudo. E é essa ameaça que parece rondar os protagonistas, embora Peele consiga ressignificar toda sua obra com os minutos finais.
Nós é uma obra com medos diferentes que chocam-se em uma vertente desconfortável e irônica, provocando um riso engasgado em mais de um momento sem deixar cair a tensão do horror assim que ele começa. Enquanto a sequência inicial provoca o espectador, que inevitavelmente irá tentar traçar algum paralelo de origem para o mal apresentado, a presença dos invasores se prova como algo além do simples medo da “cópia”, ou de si mesmo. Enquanto Corra! trata do racismo, Nós aborda o privilégio de alguns em detrimento da marginalização de outros.
Enquanto a temática funciona narrativamente, Peele utiliza a ideia para provocar medo de forma quase subconsciente. Somos marginalizados e tememos permanecer neste posto ou somos privilegiados e tememos perder tal privilégio? Além de, é claro, o medo de que o mundo vire de cabeça para baixo — e os marginalizados tomem o lugar dos privilegiados — em um movimento de tamanha loucura digna de um Alice no País das Maravilhas — e, portanto, mais do que justificando a metáfora óbvia de descer pela toca do coelho e abraçar a loucura no clímax do filme.
O comentário estende-se em vários níveis, criando um sem fim de referências e símbolos que funcionam para intensificar os debates e abrir o leque de interpretações, mas o fato é que o horror de Peele vem tão afiado quanto uma das tesouras douradas portadas pelos invasores, encontrando na figura de Lupita Nyong’o uma atuação perfeita em ambos os papeis: da protagonista Adelaide e de Red, sua duplicata.
De fato, é na dualidade das duas personagens — genialmente alcançada pela atriz — que reside muito do impacto da obra, já que Red é a única dentre os invasores que demonstra ser algo a mais, uma vez que os demais aparentam ser tão ‘vazios’ quanto os corredores do labirinto onde a ação se desenrola no ínicio e no final da obra. E até mesmo aí, recai um dos comentários precisos do diretor: até onde nós, enquanto sociedade, somos apenas um grande conjunto de vazios?
Se já não bastasse questionamentos o suficiente para provocar o espectador — pensar demais em Nós pode despertar várias ansiedades… acreditem —, o horror visual proposto por Peele traduz esses pensamentos em sequências completamente angustiantes, vide o momento da “cirurgia plástica” da personagem de Elizabeth Moss ou mesmo em ícones assombrosos por si só, como a máscara de Pluto, a contraparte do personagem de Evan Alex. Além de, óbvio, o horror simples e cru que existe ao pensar em encarar a si mesmo numa versão simplesmente má e vazia. Ou será que nós somos a versão má e vazia de nós mesmos? Enfim, o horror de Nós.

Ato III: Não! Não Olhe!
Muito se imaginava o que poderia vir pela frente para fechar a primeira trinca de filmes com Jordan Peele na direção, principalmente com suas duas primeiras produções figurando entre as melhores obras do gênero dos últimos anos. Do racismo de Corra! para o debate intrínseco sobre privilégios em Nós, Peele parte para Não! Não Olhe!, em uma obra que amarra uma forte homenagem ao cinema com elementos do horror — em vez de somente banhar-se no gênero — para comentar a sociedade do espetáculo que nos tornamos na era das mídias sociais.
Em Não! Não Olhe!, Peele faz uma “mixagem” de dois gêneros bastante tradicionais do cinema: o faroeste e a ficção-científica — mais especificamente o subgênero de alienígenas. Enquanto a primeira vista esses dois estilos não pareçam conciliáveis — vide o desastroso Cowboys & Aliens, de 2011 —, Peele consegue combinar seus elementos para criar uma narrativa interessante e que felizmente não parece limitar-se ao seu trabalho realizado anteriormente, sendo bastante diferente das duas obras anteriores.
Não! Não Olhe! gira em torno de dois irmãos vividos por Daniel Kaluuya, em sua segunda parceria com Peele, e Keke Palmer. Com um legado ligado às raízes de Hollywood, a dupla se vê pega em um mistério envolvendo a morte do pai, uma ex-estrela da TV e um OVNI que pode ser a chance de ouro para a dupla conseguir salvar a fazenda de cavalos da família. Com esse enredo em mãos, o diretor cria uma atmosfera praticamente inédita em seu cinema, que parte da tensão para a ação e ressignifica elementos-chaves encontrados na própria história do cinema hollywoodiano.
Partindo do faroeste, cuja importância para o cinema hollywoodiano é praticamente imensurável, assim como suas problemáticas — misoginia e racismo, para citar apenas duas —, o diretor novamente se presta a brincar com símbolos e referências clássicos para fazer com que Não! Não Olhe! se torne uma obra com novo olhar para o faroeste. Se o subgênero tende a expor a história americana como uma grande conquista à pulsos firmes de homens brancos e brutos, o neo-werstern de Peele escolhe seus pilares com cuidado: um homem pouco expansivo e uma mulher, ambos negros.
Momentos específicos, como OJ (Kaluuya) cavalgando para fora da poeira, ou Emerald (Palmer) manobrando a moto — com direito à referência de Akira — surgem dessa ideia e geram sequências impactantes por si só, que devem encher os olhos dos cinéfilos mais assíduos. Outros momentos, entretanto, buscam no horror a pulsão necessária para que Não! Não Olhe! se torne uma experiência imersiva e apavorante, capaz de deixar o espectador na beira da poltrona e incapaz de piscar para não perder o show. De forma mórbida, é claro.
Afinal, o horror de Não! Não Olhe! nasce justamente no choque do espetáculo como um acidente na estrada: não é algo que desejamos assistir, mas por algum tipo de curiosidade, nos prende a atenção. Essa alusão foi feita pelo próprio diretor, e traduz muito de suas intenções com seu terceiro filme, onde a armadilha é justamente o olhar: apenas aqueles que não resistem à curiosidade e olham para o OVNI que são atacados. Saber disso, entretanto, não ajuda a resistir à uma espiada, algo retratado de maneira genial no terceiro ato da obra quando o cinegrafista interpretado por Michael Wincott, que havia concordado em ajudar OJ e Emerald, decide se arriscar ao tentar para conseguir a “filmagem impossível” — the perfect shot, no original — do OVNI, não apenas capturando sua imagem, mas fazendo isso diante da melhor iluminação possível. São a ambição e a curiosidade do personagem que causam sua ruína na obra.
Afinal, o horror de Não! Não Olhe! nasce justamente no choque do espetáculo como um acidente na estrada: não é algo que desejamos assistir, mas por algum tipo de curiosidade, nos prende a atenção. Essa alusão foi feita pelo próprio diretor, e traduz muito de suas intenções com seu terceiro filme, onde a armadilha é justamente o olhar: apenas aqueles que não resistem à curiosidade e olham para o OVNI que são atacados. Saber disso, entretanto, não ajuda a resistir à uma espiada, algo retratado de maneira genial no terceiro ato da obra quando o cinegrafista interpretado por Michael Wincott, que havia concordado em ajudar OJ e Emerald, decide se arriscar ao tentar para conseguir a “filmagem impossível” — the perfect shot, no original — do OVNI, não apenas capturando sua imagem, mas fazendo isso diante da melhor iluminação possível. São a ambição e a curiosidade do personagem que causam sua ruína na obra.
Conforme Não! Não Olhe! estabelece essa premissa, toda a ideia de espetáculo é estruturada e questionada por Peele. Partindo da tragédia em uma sitcom envolvendo o ataque de um chimpanzé em frenesi — não muito diferente de casos ocorridos em shows da vida real — até a inserção de um “repórter” da TMZ — veículo de mídia conhecido por seu sensacionalismo — e a escolha do nome do protagonista, tudo volta seus olhares para o espetáculo da obra enquanto Não! Não Olhe! é, também, um espetáculo por si só. E nós, espectadores, é que não recusaremos olhar para isso, admirando a beleza — e o horror — da obra.
Se nós não desviamos o olhar — ainda que seja um filme e esteja ali para ser visto, claro —, sabemos no nosso íntimo que a curiosidade mórbida nos faria querer ver aquilo tudo na vida real. Tal qual um acidente de carro, ou mesmo um filme de terror violento, algumas coisas simplesmente atiçam essa atenção do ser humano. No olhar, nos pegamos assistindo desde as vidas alheias até as tragédias diversas do dia-a-dia, às vezes com um fascínio do qual não nos orgulhamos, mas não conseguimos negar. Enfim, o horror de Não! Não Olhe!
Esse texto faz parte de A TELA INQUIETA, a 4ª edição da Revista Singular. Para mais textos clique aqui e para conferir mais do trabalho do autor clique abaixo.