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Crítica | Onda Nova (1983): Nós, mulheres meio Rita Lee

E nem só de cama vive a mulher, às vezes de futebol também.



Um pouco de diário, um pouco de crítica: decidi escrever somente sobre filmes vistos na tela de um cinema este ano, movida pela curiosidade de saber o quanto a opinião sobre um filme é moldada pela experiência coletiva das salas de cinema. Uma pesquisa empírica (nível 1) pra chamar de minha. Fazendo isso também como uma espécie de despedida desses ambientes físicos… Comecei por Notícias de Casa (1977), com crítica também postada nessa revista. E agora, Onda Nova (1983), o segundo filme deste experimento, que foi visto em sessão dupla nesta última sexta-feira (11) no Cine Brasília. Aliás uma ótima sessão dupla com Mulholland Drive.


Agora ao que interessa: o filme!


Onda Nova começa já irreverente aos padrões performáticos de gênero com uma partida relaxada de pelada com homens e mulheres travestidos e uma taxista fazendo churrasco à beira do campo para a elite masculina engravatada. Que mulherão! Além dessas quebras de performance, o filme se apresenta logo de cara como uma comédia de trocadilhos inteligentes que brinca com métodos anticoncepcionais, temas queer, ciclo menstrual e futebol. “Ai, tô preocupada com a tabela”... E estava mesmo, preocupada com a tabela do campeonato que as Gaivotas Futebol Clube participavam.


Assim, Onda Nova é lançado em 1983, ano da regulamentação do futebol feminino no Brasil, como uma espécie de fabricação do futebol amador feminino ideal, perpassado pelo desejo e gozo feminino, que nunca foram efetivamente liberados. Um filme de mulheres que riem. Seja de si, do futebol ou do próprio filme, que apesar do seu interesse pela imagem se mostra bem leve e descontraído em outros aspectos. Com muita brincadeira andrógina, compreensão meta irônica do queer e mulheres que não necessariamente podem ser decodificadas como femininas ou masculinizadas, mas que exercitam suas personalidades e sexualidade de forma livre. Além da sexualidade, o futebol - tema do filme – é tratado como uma outra forma de diversão, não é levado tão a sério. É um futebol bem “sapatilha”, com prática de ballet no meio do campo com o time adversário, sem grandes rivalidades típicas do futebol masculino em campo… Afinal, futebol como os homens jogam é chato demais pra ser esporte de meninas! Girls just wanna have fun!


Mas nem tudo são flores e o universo feminino não se limita à diversão e ao desejo, mas também ao ciúme, ao exagero e às tristezas, como qualquer outro ser humano. E tal como em campo, a crise de ciúme de Ritinha não gera rivalidade entre ela e outra mulher. Mas é como humana,  tem direito aos seus dias de “beber caldo de cana e cheirar pó” pra superar uma traição. Bem como consegue viver sua vida sem deixar se prender a um homem só. Ela não deixa de ser feliz.


Saindo dos quesitos emocionais das personagens, o filme não é exatamente uma pornochanchada. E se fosse, seria uma pornochanchada “cult”. Há sim o desejo e o sexo também como temas do filme, mas há não há o mesmo apelo aos personagens exagerados, ao escracho dos diálogos de duplo sentido, e, apesar de toda a temática de liberação feminina no futebol e no sexo, o foco do filme não parece ser o sexo e a tensão criada sobre suas insinuações. Apesar de ser bastante fã do gênero e do filme, acho que Onda Nova ganha mais sendo apartada da pornochanchada do que vendida como a Vitrine Filmes vem fazendo.


Ainda me pego pensando que talvez não seja possível criar uma pornochanchada ou uma pornografia queer/feminista que se isole da obscenidade, tabu e da transgressão, mas um filme que tem conteúdo sexual distanciado do pornográfico. Há sim a liberação do desejo que tange objetivos políticos, mas o revolucionário e pornográfico mesmo seria a perversão e a transgressão, como vemos em “A Mulher de Todos” ou em “A Dama da Lotação”. Talvez Onda Nova fique para trás de outras pornochanchadas “cult” por não pecar o suficiente dentro da lógica do filme.


Quanto as cenas de sexo: surgem sem grandes contextos. Afinal, o sexo é natural e parte unicamente do desejo de cada uma das personagens. Sexo, aliás, de corpo inteiro e sem a presença duma câmera que filma para o espectador, mas que testemunha o desejo e a carnalidade. Câmera que mostra o corpo masculino sem timidez, algo que ainda é incomum em cenas de sexo no cinema, na pornografia contemporânea ou mesmo nas pornochanchadas, pois comumente, o corpo feminino é posto como o objeto central do prazer do espectador (homem hétero), assim, o corpo masculino se torna naturalmente abjeto para a câmera, evitando-o. 


Em Onda Nova, a mulher é a voyeur na corrida de táxi da ponta de Caetano Veloso no filme e nós espectadoras, junto com ela. O olhar do filme é invertido, não para que mulheres pratiquem o prazer visual masculino – que subjuga e explora outros corpos,  inclusive os seus –, mas para que a espectadora enxergue o uma forma feminina e queer de desejar sem subjugar e violentar.


Ainda, as cenas de sexo lésbico ou gay não são feitas para a câmera ou espectador, mas acontece da câmera ser essa testemunha. O prazer das personagens é quase doloroso e se aproxima mais da realidade, pois as atrizes de modo geral não interpretam um gozo bonito ou fazem caras e bocas, não mascaram o prazer. Not very flattering sex scenes para o padrão do prazer masculino e hétero. Afinal, o filme não quer mostrar o corpo das Gaivotas para o espectador, pois a maioria delas não parece estar tão maquiada ou se preocupar em como posar o corpo para a câmera, mas elas pensam, emitem opiniões e interagem enquanto seus seios estão de fora. Fazer o que? Não é uma parte ciborgue desmembrável do corpo. Simplesmente os seios estão lá, mas elas não estão na tela pelos seios.


Por fim, Onda Nova é um desses filmes legais pra mostrar pra mãe e pro pai, pois rompe certos discursos de “puritanismo” geracional hipócrita. Já que suas cenas, quando pensadas como registros doutra época, nos entregam a proposta de: "aprisionar a realidade, de recusar deixá-la fugir." (Susan Sontag), quebram com todo o discurso geracional de “na minha época não era essa baixaria”, e nos faz pensar que nossas mães já tiveram 20 e poucos anos e foram também bem Ritinha, Batata e Rubi. Enfim, a “geração anos 60 que quase se arrebenta de tanto se esfregar”... E como já dito, o filme enquanto obra distanciada da pornochanchada e aproximada do cinema queer ganha muito mais força e continua sendo uma comédia super alto astral e leve, com forte interesse pela imagem e uma abordagem tão feminina que estranha ser um filme feito por homens. Divertidíssimo!


 

Nota da crítica:

 

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