Em forma televisiva e despretensiosa, Marcelo Gomes constrói um documentário sobre o onírico, desapegado da oniricidade.

Marcelo Gomes subia ao palco e, com sua voz rouca, contou um pouco da trajetória do filme — uma conversa entre cinema e ciência, disse ele. Fala que me levou a pensar no pressuposto do cinema como arte tecnológica, de seus processos químicos e físicos. A arte que nasce com uma nova tecnologia, com potencial de reproduzir e desconstruir a realidade. O cinema, neste caso, para além da narrativa em evidência, estaria diretamente ligado ao sonho? Marcelo, em suas limitações, de forma, parece entender que sim.
O filme se inicia com uma indagação fellinesca, simples: tentar entender o porquê de o diretor, repentinamente, parar de sonhar. Ele busca uma explicação ao refletir sobre seu último sonho e o momento de pandemia que precedia a produção do filme. De sua solidão como motivo do cessar do onírico, mas, sozinho, não encontrou respostas. Assim, buscou entender melhor o mundo dos sonhos em suas várias esferas sociais, místicas e biológicas, através de outros personagens e respectivas expertises, para decifrar e, assim, resolver seu problema.
No filme, existem passagens, ou melhor, transições entre cenas, no sentido mais direto do que pode ser uma transição de vídeo. Em diversos momentos do filme, Marcelo escolhe nos apresentar imagens experimentais que remeteriam ao mundo dos sonhos: animações genéricas, vazias de sentido e expressão, e imagens feitas, às vezes com uma câmera Super-8, às vezes com um vídeo editado para emular a textura da Super-8. Ao diminuir a imagem do onírico a essas representações dicotômicas e literais do que é a realidade e o sonho, ele reduz o conceito do filme à representação. Essa tem se tornado uma tendência em muitos filmes contemporâneos que recuperam o uso desses formatos analógicos e, no caso da Super-8, rudimentares, para, quando não utilizados no sentido mais nostálgico, verem o grão como realidade impressionista. O uso da tecnologia para esses propósitos, mesmo que, a esse ponto, irritante, pode, como todas as outras técnicas, funcionar. É uma questão de contexto, de montagem e sensibilidade que aqui falta. A emulação do grão é muito perceptível e torna a experiência, já mal colocada, bastante tola e ingênua. Ingênua por não compreender a tendência que corrobora e datada porque a emulação já não tem espaço para ser feita de forma tão despretensiosa.
Existe um fluxo e uma estrutura bastante comum nesse e em outros documentários feitos para a internet e outras mídias fora do cinema: talking heads “bem iluminados” e uma narração em off que tenta ao máximo totalizar o entendimento do filme a certo tema. O que não necessariamente é um problema. O documentário expositivo é uma abordagem válida. A depender da força do personagem entrevistado, menor que seja a interferência formal do cineasta nos mais pobres documentários expositivos, pode funcionar como um filme ok, um filme banal, mas funcional. Não basta o objeto ter conhecimento do tema, nem ser o tema. Ele precisa, de alguma forma, se mostrar interessante ou carismático.
De qualquer forma, em alguns momentos mais inspirados, Criaturas da Mente consegue encontrar diferentes caminhos. Marcelo se mostra presente em algumas cenas: interrompe o entrevistado com uma pergunta, após alguns minutos de um monólogo, e, em algum momento, participa da experimentação que o documentário exige. Ele mesmo utiliza a substância alucinógena do ayahuasca e subverte um tanto o caminho inevitável que o filme tomava. A partir dessa experiência, ele quebra a estrutura pré-delimitada e filma, mesmo que de forma genérica e contando ainda com essas aberrações da edição mais “onírica" e amadora, uma conversa com sua mãe, já bastante idosa, sobre o sonhar. Nesses momentos de maior liberdade, junto ao encontro de personagens carismáticos, como o próprio diretor, felizmente, o filme se aproxima da abordagem mais humorística, pessoal e “sem rumo” de cineastas como Agnes Varda e Luc Moullet. Um estágio do filme que, mesmo por tempo limitado, parece entender o cinema como sonho.
Nota do crítico:

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