As mortes de David Lynch
- Rodrigo Heber
- 9 de mar.
- 18 min de leitura
Atualizado: 26 de mar.
Fragmentos da condição mortal.

O cinema de David Lynch opera pela revisão artística e psicológica de velhas convenções do cinema e da televisão. Sua decupagem quase sempre varia da decupagem clássica, seus enredos geralmente partem de situações típicas do cinema de gênero e muitas de suas cenas mais impactantes culminam no mesmo tipo de apelo emocional que os filmes B. Poucos cineastas de terror me chocaram tanto quanto Lynch, poucos cineastas de comédia me fizeram rir tanto quanto ele.
Dos seus dez longas-metragens, nove representam diretamente a morte. Sendo ele um cineasta tão ligado aos artifícios e convenções de gênero, eu raramente vi nessas mortes algo além de meios para lidar profundamente com outros temas. Em filmes como Eraserhead (1977), Coração Selvagem (1990) e Estrada Perdida (1997), a morte sempre me pareceu “mera” consequência dramática da exploração de outros temas — como os compromissos interpessoais e a fuga das responsabilidades (seja pelo mundo dos sonhos ou pelo assassinato).
Talvez essa minha impressão se deva à frequência com que as narrativas de gênero banalizam a morte e a violência, chegando a dessensibilizar o público — algo criticado pelo próprio Lynch em entrevistas. Independentemente do motivo, eu só detive meu pensamento na morte como um tema de Lynch no início deste ano, quando o próprio cineasta encontrou seu destino eterno. Se antes eu via a morte apenas como engrenagem dramática dentro de um jogo maior, agora percebo que ela atravessa sua obra de maneira essencial.
Comparando as cenas em que a morte surge, percebe-se bem a variedade de sentimentos e significados que o cineasta reconhece nela. Por isso, não percamos tempo buscando alcançar uma conceituação definitiva da morte no cinema de Lynch. Em vez disso, proponho arbitrariamente, como quem tira cartas de um baralho, quatro aspectos pelos quais a morte é representada em seus filmes.

Talvez o aspecto mais recorrente da morte em seus filmes seja o propriamente fúnebre, às vezes trágico. Aqui, a morte é tida como um fato terrível e lamentável da condição humana, diante do qual o mais apropriado é simplesmente chorar. Um dos exemplos mais marcantes desse aspecto em sua filmografia está no suicídio ao final de Cidade dos Sonhos (2001).
Após acompanharmos Betty/Diane por mais de duas horas, descobrindo seus anseios e frustrações, bem como suas alegrias e sua derrocada moral, vemos a morte como uma tragédia. Ela surge como expurgação de toda a culpa revelada no último terço de narrativa, sendo anunciada simbolicamente desde antes, quando Betty e Rita encontram o cadáver de Diane já em seu leito de morte (antes mesmo do homicídio ou do suicídio sequer parecerem possibilidades aos olhos da protagonista).
Depois que o tiro ecoa e nossa heroína morre, o cineasta apresenta uma imagem em slow motion da personagem alegre. Ela está superexposta e se sobrepõe a outra imagem: uma panorâmica de Los Angeles, cidade associada à ruína da protagonista. Durante esse lamento visual, ouvimos uma música lenta e triste de Angelo Badalamenti — uma composição que já havíamos escutado como tema de mistério, mas que agora surge como tema fúnebre: um réquiem para Diane.
Outro ótimo exemplo está na maneira como o episódio piloto de Twin Peaks (1990-1991) lida com a morte de Laura Palmer. Não chegamos a ver seu assassinato, mas o cineasta consegue concretizar emocionalmente sua morte pela representação dos fatos posteriores a ela.
Assim que a história começa, o cadáver é descoberto por Pete, que mal consegue comunicar à polícia o que viu, de tão assustado. Quando os policiais chegam ao local, todos reconhecem a moça e, então, a música tema de Laura Palmer (uma das mais comoventes da filmografia de Lynch, também composta por Badalamenti) domina a cena pela primeira vez.
Em seguida, boa parte do elenco principal da série é introduzido no contexto em que recebe a notícia do falecimento de Laura, e a reação de cada personagem é um espetáculo para Lynch. Ele investe o primeiro terço desse episódio (ou seja, trinta minutos) no luto das personagens, de modo que o sofrimento dramatizado torna Laura uma personagem verdadeira, sem que ela seja uma personagem encenada por si — sua existência não é encenada, mas o público já a imagina e sente o peso de sua morte.
O interesse pela morte através do sentimento fúnebre é tanto que Lynch só se preocupa em introduzir o protagonista da série aos trinta e seis minutos de episódio. Afinal, se trata de um agente do FBI que não conhecia Laura e que, portanto, não chorará sua morte. Ele é dispensável para o estabelecimento de um clima condolente em Twin Peaks. Tudo o que importa, num primeiro momento, são os travellings lentos pelos corredores vazios da escola em que Laura estudava, os amigos mais próximos entendendo que ela morreu ao apenas observarem o ambiente, a mãe se desfazendo em lágrimas pelo telefone…
Neste primeiro aspecto, a morte é retratada como flagelo.

Numa tendência bastante oposta àquela descrita acima, há o aspecto irônico da morte. Neste, o cineasta a representa em circunstâncias surpreendentes e incongruentes, a uma distância emocional que favorece o riso. Um dos exemplos mais marcantes desse aspecto em sua filmografia também se encontra em Cidade dos Sonhos, na cena em que um assassino de aluguel precisa matar uma pessoa, roubar um caderno e sair em silêncio, mas acidentalmente mata três pessoas, queima um aspirador de pó e dispara um alarme de incêndio.
Outro exemplo emblemático aparece em Coração Selvagem, na cena em que Bobby Peru, o criminoso grotesco interpretado por Willem Dafoe, acidentalmente dispara uma espingarda contra a própria cabeça — que é arrancada pelo tiro e acerta uma parede. Essa morte se insere numa cena longa, que provoca sentimentos conflitantes ao articular diversas ações simultâneas com consequências distintas para cada personagem. Mas a sequência de ações que leva à morte de Bobby Peru é perfeitamente estruturada como uma piada de mau gosto.
Quando Lynch retrata a morte assim, ela se torna menos grave e a vida humana parece menos digna, mais descartável. Esse é um lado de Lynch que entretém muita gente e parece ter inspirado Tarantino, que é fã confesso das primeiras temporadas de Twin Peaks, mas também é um lado que enoja muita gente e que foi motivo de polêmica durante anos. Por exemplo, comentando outra cena de Coração Selvagem, em que o personagem de Nicolas Cage espanca até a morte um homem negro que tentou atacá-lo com uma faca, Roger Ebert chegou bem perto de acusar Lynch de racismo:
"Algumas pessoas riem quando veem essa cena. Elas gostam do jeito como é visualmente exagerada: Cage parece um vilão de filme mudo. Eu não ri. Vi o payoff como uma tentativa de Lynch de neutralizar a violência — de justificar uma cena carregada racialmente de malevolência sem remorso."
No mesmo texto, o crítico chega a acusar Lynch de misoginia. E, muito embora eu discorde de Ebert em diversos sentidos, sua sensibilidade foi legitimamente ofendida por algo que realmente está em Coração Selvagem. Trata-se de um senso de humor que desafia os próprios fundamentos da vida comunitária — mais do que racismo ou misoginia, ele beira à misantropia. Sobre tal, o crítico literário Terry Eagleton escreveu:
“O humor negro desse tipo alivia a culpa que podemos sentir por nosso deleite com os problemas alheios ao socializar esse deleite, fazendo com que assuma a forma de uma piada que compartilhamos com nossos amigos e que, desse modo, se torna mais aceitável.”
Em seguida, o próprio Eagleton questiona até que ponto esse tipo de humor é socialmente justificável — um questionamento legítimo para qualquer pessoa preocupada com as implicações éticas da estética. Goste ou não, esse tipo de humor estica a sensibilidade cômica ao ponto da insensibilidade, e seu êxito está no cruzamento dessa fronteira. Quando Lynch adere a esse estilo cômico, ele relativiza os padrões com que todos nós costumamos pensar e falar tanto da morte quanto da vida.
Inclusive, o sentimento condolente com que ele trata a morte de Laura Palmer no primeiro episódio de Twin Peaks também é relativizado no quarto episódio da série, na cena em que Albert (o perito do FBI interpretado por Miguel Ferrer) está prestes a abrir o crânio de Laura com uma furadeira, mas é interrompido pelo médico local, que a puxa da tomada, indignado. Em seguida, Albert diz alguma piada maldosa contra os “caipiras” de Twin Peaks e leva um murro do xerife, de modo que ele desaba sobre o cadáver de Laura — em torno do qual, a cena inteira orbita e para o qual as atenções se voltam nos momentos mais risíveis.
Posteriormente no mesmo episódio, a cena do funeral de Laura mistura tensão e reverência a pitadas de completa alienação do bom senso, que nos afasta da compaixão até então nutrida. A cereja do bolo é o patético desmoronamento do pai de Laura sobre o caixão da filha, que começa a subir e descer repetidamente devido ao excesso de peso no mecanismo elétrico.
Deste modo, podemos observar que o maior erro de Ebert foi condenar o desdém cômico de Lynch à parte de sua contextualização dramática, que é sempre multifacetada. Seu segundo maior erro foi não perceber que essa crueldade cômica apenas radicaliza o caráter bathético e destrutivo do humor em geral, o que não implica na destruição de todo bom senso e ordem política. Como defende George Orwell:
"Tudo isso não significa que o humor é, em sua natureza, imoral ou antissocial. Uma piada é, no máximo, uma rebelião temporária contra a virtude, e seu objetivo não é degradar o ser humano, mas apenas lembrar que ele já é degradado.”
Quando rimos insensivelmente com Lynch, apenas valorizamos indiretamente a vida humana, porque aceitamos seu caráter intrinsecamente frágil — sendo a morte nossa maior fragilidade. Rir de coisas nefastas não é apenas uma forma de socializar deleites antissociais, mas uma forma de lidar com nossas fraquezas. Não nos humanizamos comunitariamente por nossas virtudes, afinal estas sempre são raras, mas por nossas fraquezas. No humor sádico, Lynch nos faz experimentar uma “solidariedade de fraquezas” e, ironicamente, valoriza a vida através de sua desvalorização, como Eagleton explica:
"Confrontar nossa própria extinção de forma fictícia significa que o ego pode transcendê-la de maneira monumental, obtendo um breve gostinho da imortalidade."

Nosso próximo aspecto é o místico, em que toda a materialidade se rende ao enigma metafísico. As ocorrências da morte desafiam nossa racionalidade e evidenciam os limites da representação cinematográfica, que depende de códigos visuais para lidar com fenômenos que superam a visão. Para Lynch, que concebia o mundo espiritualmente, a morte é sempre um fenômeno invisível, mas este aspecto de sua obra lida apenas com a parte medonha desta invisibilidade. Nisso, ele se aproxima do conceito de deslumbramento ou terror cósmico do escritor H. P. Lovecraft, que começou um célebre ensaio afirmando que “o mais antigo e forte tipo de medo é o medo do desconhecido”.
Neste aspecto da morte, Lynch reage à invisibilidade pelo excesso imagético e à imaterialidade pela representação de violência física extrema. Sua abordagem aqui tende tanto ao enigma quanto ao horror implacável.
Um ótimo exemplo se encontra no clímax de Eraserhead, em que um bebê de aparência terrivelmente desumana é assassinado pelo próprio pai. Inicialmente, o pai apenas corta os panos que envolvem o recém-nascido, que começa a agonizar assim que a tesoura toca suas vestes. Quando o pai termina de cortá-los, o ventre do bebê se abre, como se ele fosse uma espécie de autômato, e revela seus órgãos internos, como se aqueles panos não fossem apenas as vestes, mas o próprio corpo da criatura. Se a cena parasse neste ponto, sem uma causa de morte reconhecível, seria o suficiente para sentirmos que a criança está num caminho sem volta rumo ao túmulo. Mas a cena prossegue e o pai usa a tesoura para estraçalhar violentamente os órgãos do bebê, cuja agonia deforma seu corpo ainda mais, de formas que o espectador ainda nem poderia imaginar.
Pela própria natureza mística da narrativa, alguns dos melhores exemplos deste aspecto estão em Twin Peaks (2017). Logo no começo da última temporada, policiais encontram, num apartamento, a cabeça de uma mulher justaposta a um corpo masculino decapitado. São dois dos cadáveres mais nojentos do cinema e da TV, e há uma artificialidade especial na fotografia e no CGI do plano geral que os revela. Por todo o apartamento, há impressões digitais de um certo Bill Hastings.
Ao longo da temporada, as situações que levaram àquela bizarra cena de crime são parcialmente elucidadas, mas cada nova informação mistifica ainda mais a aparição desses corpos. Em certo ponto, Hastings (tremendo de medo e encharcado de lágrimas) relata o evento que provavelmente levou às duas decapitações, mas não consegue pôr o momento exato em palavras. Mesmo os verbos e adjetivos que ele usa para falar das pessoas envolvidas acrescentam ao esoterismo da situação. Segundo Hastings, o homem que foi decapitado, por exemplo, estava “hibernando” num ferro velho.
Poucos episódios depois, um ser espectral mata Hastings. Tudo o que Lynch nos permite ver são poucos segundos do que parece ser um lenhador coberto de graxa se aproximando dele. Em seguida, ouvimos o breve som da cabeça de Hastings explodindo e, junto com as demais personagens, vemos o cadáver, que é tão grotesco quanto possível. Mais uma vez, o momento exato da morte nos é ocultado em prol do misticismo. Além disso, a visibilidade do assassino varia muito: primeiro, ele caminha para trás de uma parede e, depois, sua forma física some e reaparece algumas vezes no mesmo plano (pelo uso simples e artificialíssimo de fades). Embora sua visibilidade seja estratégica para a narrativa da série, já que tanto nós quanto alguns personagens o vêem, o espectro não se comporta como se estivesse sendo observado.
Este e vários outros assassinos sobrenaturais do universo de Twin Peaks são absolutamente impassivos diante de outras personagens ou de qualquer obstáculo físico. Tal indiferença amplifica a sensação de que eles pertencem a um plano superior à condição humana, mas que misteriosamente transitam entre nós. Algumas cenas fazem parecer que eles estão por toda parte, invisivelmente rondando a terra. Essa eterealidade sugerida pela atuação e pelos simples truques de montagem dá a impressão de que os corpos humanos com que se apresentam não fazem jus ao que eles realmente são. Mesmo assim, eles são representados como seres grotescamente físicos e quem os visse sem o contexto da série dificilmente pensaria neles como algo além de homens muito mal cuidados. Esse paradoxo faz parte do exagero material com que Lynch representa a terrível inefabilidade do imaterial.
Na parte oito dessa temporada, um desses lenhadores se corporifica e mata duas pessoas, esmagando seus crânios com uma única mão. Quando ele ataca a primeira vítima, vemos um ótimo exemplo da simples forma de decupagem que Lynch criou para o terror místico.
Nesta cena, o diretor intercala repetidamente dois setups de câmera: um plano geral que se fecha lentamente na vítima e outro que faz a mesma coisa com o assassino. Até que uma incongruência se estabelece quando um dos planos entra num slow motion meio travado e o outro plano continua em velocidade normal, sem que se dessincronizem. Quando o assassino agarra a cabeça da vítima, ela cai de joelhos e se desenquadra em ambos os planos. De repente, surge um terceiro setup de câmera, que só é utilizado uma vez na cena inteira — um primeiríssimo plano da vítima, em que a câmera treme freneticamente: vemos borrões ligeiros de seu rosto se cobrindo de sangue e ouvimos seus gemidos de dor e o som molhado do seu crânio quebrando. Mais uma vez, a artificialidade reina, porque o evento representado não é plenamente físico, embora se esbalde da fisicalidade de uma boa morte cinematográfica. Toda essa estilização serve para comunicar num nível não apenas intelectual, mas sentimental, o caráter inefável dessa morte tão violenta.
Aqui, vale a pena retornarmos à morte que Lynch explorou com mais diversidade de sentimentos em sua filmografia: o assassinato de Laura Palmer. Desde o primeiro episódio da primeira temporada, com os detalhes ritualísticos na cena do crime, sabemos que o assassino possui intenções místicas, mas não sabemos detalhes de coisa alguma e bem que Laura pode ser apenas a vítima de um ocultista louco — sem que sua morte seja, em si, um evento místico, além da compreensão humana.
Mas as coisas mudam bastante de figura sete episódios depois, quando o psiquiatra de Laura diz à polícia que, embora a moça não tenha se matado, ela queria morrer. Ele mesmo não sabe explicar bem o que disse e os policiais sentem o peso desta informação mais do que o entendem. Para mistificar mais, a ponto de provocar calafrios, o episódio termina com o flashback de uma testemunha do assassinato: vemos planos soltos de Laura rindo loucamente enquanto sangra, alguns planos do assassino a esfaqueando e um longo plano da moça morta no chão enquanto o assassino chora.
No filme Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer (1992, David Lynch), o aspecto místico do evento se intensifica pela introdução de novos elementos simbólicos, que recontextualizam e ressignificam toda a narrativa. Além disso, o filme nos atordoa por duas horas contínuas da grande teia de relações ocultas que foram apenas descritas ou brevemente vislumbradas na série original. Assim, quando o clímax chega e Lynch nos re-apresenta à cena de assassinato com a qual já estamos familiarizados, o chão cede sob nossos pés e descobrimos por imagens fragmentárias que nada daquela morte física se limitava a fatos físicos por qualquer ponto de vista: do assassino, da vítima ou da testemunha que providencialmente sobreviveu. Em meio a diversos planos curtos que negligenciam a organização espacial da cena, com luzes piscando, efeitos sonoros ensurdecedores e um réquiem de Luigi Cherubini, vemos o rosto de Laura se fundindo momentaneamente com o rosto de seu assassino, um anjo intervindo em favor da testemunha e, num jump cut, vemos que a vítima selou o próprio destino ao colocar um anel mágico que nem estava em cena até poucos segundos antes.

Chegamos, então, ao último aspecto deste ensaio: o esperançoso, em que Lynch expressa o sentimento religioso sobre a imortalidade da alma. Aqui estão algumas das expressões cinematográficas mais consoladoras da mortalidade. Este aspecto se diferencia razoavelmente do misticismo tratado anteriormente porque não há medo do desconhecido aqui; pelo contrário, há uma corajosa aceitação do fim. Ele também se diferencia por tender menos ao exagero visual e mais à sugestão por símbolos simples. Em alguns casos, Lynch suprime a concretização visual da morte em prol de uma internalização de seu caráter religioso.
Logo em seu segundo longa, O Homem-Elefante (1980), encontramos uma entusiástica apologia poética da imortalidade da alma. Na última cena, nosso protagonista, a quem toda a sociedade sempre negou a dignidade humana, finalmente se sente respeitado e amado pelas pessoas. A única coisa que ele sempre quis fazer e ainda não fez, que ele idealiza como a realização plena da humanidade, é dormir deitado numa cama. Devido à sua deficiência física, ele sempre precisou dormir sentado, porque sua respiração se afetaria caso deitasse e ele provavelmente morreria durante o sono. Mas é exatamente isso que ele decide fazer, porque finalmente se tornou humano. E essa realização plena da humanidade é o que envolve sua morte, preparada ritualmente num longo plano, em que ele tira de sua cama os muitos travesseiros que apoiavam suas costas, deixando apenas um. Ele se deita, com a cabeça sobre um único travesseiro. Ouvimos a música suave e arrebatadora de John Morris, que nos sugere a esperança de humanidade plena, mas imaterial, para um homem cuja humanidade sempre foi verdadeira, mas negada no plano material.
No momento que o “homem-elefante” finalmente se deita, Lynch corta para um primeiro plano dele aparentemente dormindo, talvez já morto. Não vimos e não veremos o momento de sua passagem, que é visualmente insignificante, mas invisivelmente pleno de significado. Então, a câmera passa a vagar pelo quarto e observar as recordações de sua vida, curta e cheia de sofrimentos. Cada elemento daquele quarto parece símbolo de uma humanidade maior do que pode ser contida no mundo terreno. Graças à genial fotografia de Freddie Francis, a catedral de papelão que nosso protagonista montou ao longo do filme parece, pela primeira vez, uma catedral de verdade, majestosa, muito maior do que seu material. Então, a câmera se volta para a janela e avança rumo às estrelas, onde vemos o rosto da falecida mãe de nosso protagonista, cuja aparência externa reflete a beleza interna de seu filho. Uma voz feminina, supostamente da mãe, ecoa no reino celeste:
“Nunca, nunca… nada morrerá. O rio flui, o vento sopra, as nuvens voam, o coração bate. Nada morrerá.”
Outra morte infilmável, também acompanhada de um belo discurso poético, ocorre na última temporada de Twin Peaks, quando Margaret Lanterman, a Senhora do Tronco, telefona para se despedir do oficial Hawk. Em meio a outras coisas, ela diz:
“Hawk, eu estou morrendo. Você sabe sobre a morte, que é apenas uma mudança, não um fim. [...] Há medo, medo em deixar ir. [...] Meu tronco está ficando dourado. O vento está gemendo. Eu estou morrendo. Boa noite, Hawk.”
Como os momentos alegres da série não bastam para nos elevar à contemplação da plena alegria da vida eterna, recebemos esta cena tocante. Embora haja medo em deixar ir e a personagem esteja em visível sofrimento, trata-se de um monólogo muito esperançoso, que, longe de representar os sentimentos de uma única personagem, cristalizam os sentimentos do próprio cineasta.
Ao final da cena, Hawk se despede de Margaret e eles encerram o telefonema. Na cena seguinte, ele convoca todos os funcionários de plantão na delegacia e comunica o falecimento de Margaret. Ninguém a visitou ou a viu morrer, nenhum médico fez a declaração e ninguém possui confirmações empíricas do ocorrido, mas Hawk sabe que ela se foi, como uma certeza religiosa, que excede os limites da razão. E, na cena seguinte, vemos apenas um plano geral em que as luzes da cabana de Margaret se apagam lentamente. Esta é a única representação visual que Lynch nos oferece da morte de Margaret — sem considerar imagens poéticas evocadas por frases como “meu tronco está ficando dourado”, que não se concretizam graficamente.
Lynch não é Robert Bresson e nunca pretendeu ser — sua grandeza está no que o diferencia de Bresson, assim como a grandeza de Bresson está no que o distingue de cineastas como Lynch. Mas momentos assim, em que ele faz a rara opção pela simplicidade simbólica e pela elipse, em que a morte dispensa representações diretas e o que importa é apenas a ascensão da alma, inevitavelmente me remetem a outros momentos espirituais do cinema, como a morte do protagonista em Diário de um Pároco de Aldeia (1951, Robert Bresson). O que importa é que “tudo é Graça” — inclusive a morte, concretização máxima da desgraça, porque Deus restaura todas as coisas e superabunda sua Graça onde o pecado abundou.
No aspecto místico da morte, analisado anteriormente, ela se mostrava superior à vida pela imposição do medo, das forças incompreensíveis e impiedosas, sejam do além ou do coração de um pai louco. Por outro lado, neste aspecto esperançoso, a morte se mostra superior à vida porque ela é o meio de se chegar à verdadeira vida.
Sendo a morte a fraqueza máxima da humanidade, ela é a passagem necessária para uma vida sem fraquezas. Independentemente do que ocorrer no além, a morte é vista aqui como uma purgação necessária dos limites mundanos. Embora não seja cristão, Lynch certamente absorveu algo dos grandes paradoxos da fé em sua infância presbiteriana. Apenas mergulhando na própria fraqueza, tomando cada um sua cruz, se pode encontrar a verdadeira força. Conforme escreve são Paulo (2Co 12.9a):
“Então, ele [Deus] me disse: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza.”
Não à toa, segundo escreve em outra passagem (1Co 1:23,25), o apóstolo prega a mensagem de um Deus que morreu em humilhação pública, mas cuja fraqueza é mais forte do que a força humana. Em seguida, conclui (2Co 12.9b-10):
“De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte.”
Desta forma, o “medo em deixar ir” não só é natural, mas é desejável numa visão esperançosa da morte. Porque, na perspectiva de Lynch, uma esperança sadia depende da consciência de que a morte é uma fraqueza. Uma fraqueza que possibilita a força — sim! —, mas uma fraqueza ainda. Longe de ser agradável, ela nos subjuga e domina a todos. Apenas por seu caminho de penitência e autocontenção é que ela nos leva à eternidade.
Retornando ao nosso exemplo de sempre: Laura Palmer, cuja morte carrega em si uma miríade de significados e sentimentos. Sob certa ótica, a grande reviravolta de Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer é que nossa heroína trágica sentia a morte à sua espreita, mas não queria realmente morrer. Quando se chega ao final do filme e os anjos a abandonam, Laura se vê na necessidade de levar sua cruz até às últimas consequências. Sua jornada a leva, gradualmente, à corajosa decisão em favor da própria morte, num ato que paradoxalmente a aproxima de uma santa mártir, que busca na fraqueza a paz e a liberdade que a força lhe negou.
No clímax, a graça divina intervém em favor de sua amiga Ronette e deixa Laura entregue aos próprios méritos, mas tudo o que ela tem é sua própria vida. Nada mais.
Na fé cristã, apenas os méritos de Cristo podem salvar, o que significa que qualquer pessoa que cruza a fronteira da vida sem o amparo divino está destinada ao Inferno. E, para muitos espectadores, esta é a sensação que a última cena do filme transmite: a alma de Laura parece condenada no Black Lodge, só podendo observar os anjos à distância. Tal interpretação do filme não sugere esperança alguma. Contudo, na mesma cena, Laura abre um sorriso de alívio em meio às suas lágrimas e o agente Cooper surge para afagá-la, com um suave sorriso no rosto. Este conjunto de imagens dá a tantos outros espectadores a sensação oposta, muito esperançosa, de que sua morte realmente trouxe liberdade das maldições da vida terrena. Todavia, é justamente a ambiguidade deste final que interessa ao espectador atento, porque ela revela a profunda sabedoria de Lynch sobre a natureza multifacetada da morte. Nesta cena, há tragédia e mística, mas também há esperança. Laura finalmente descansou.

No cinema de David Lynch, a morte não é um tema isolado, mas um eixo em torno do qual suas narrativas gravitam. Ora luto, ora deboche, ora mistério, ora revelação — ela se manifesta de muitas formas distintas, porque o cineasta entendia que a realidade é complexa. Ainda assim, um padrão se impõe: suas mortes nunca desaparecem sem deixar marcas. Mesmo quando tratadas com ironia ou entregues ao absurdo, carregam um peso que resiste à indiferença. No universo lynchiano, a morte não se dissolve no fluxo da narrativa; pelo contrário, ela ecoa, reverbera e ressurge, seja na culpa dos vivos, na eternidade da alma ou na persistência de um enigma que nunca se resolve.
Mas Lynch também sabia que a morte não é apenas um evento — é uma presença difusa, uma certeza que molda a forma como nos movemos pelo mundo. Em Uma História Real (1999), seu filme mais sereno, ela não aparece diretamente, mas se insinua em cada quilômetro percorrido pelo protagonista, Alvin Straight. Se seus outros filmes lidam com a morte como ruptura, mistério ou espetáculo, aqui ela surge como um horizonte inevitável que nos obriga a agir enquanto ainda há tempo. Não há tragédia visível, mas há o peso da finitude impulsionando cada gesto. Alvin segue em frente, ciente de que o fim se aproxima, mas também, de que há algo que precisa ser feito antes que chegue.
Agora, com a morte do próprio Lynch, seu cinema adquire uma nova camada. Se a perda de um artista como ele nos entristece, sua obra permanece para reafirmar que nada some sem deixar vestígios. Como Laura Palmer, como o homem-elefante, como Alvin Straight em sua longa jornada, Lynch se vai, mas continua assombrando a imagem, insistindo em suas perguntas sem resposta. Sua ausência apenas reforça a presença de seu olhar — sempre atento ao que há de mais estranho, doloroso e sublime na experiência de estar vivo.
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