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Foto do escritorGiulia Dela Pace

A Tragédia de Belladona (1973): A parte que falta de mim é o todo

Como a existência da mulher é possível, se está condenada a vagar despossuída de seu próprio corpo?



A Tragédia de Belladona  (1973) de Eiichi Yamamoto é um filme ultrapassa os limites da arte japonesa tradicional, posta a mistura de inspirações artísticas que perpassam desde o fino traço e cenários detalhados do ukiyo-e, às ilustrações e cores psicodélicas setentistas até as perspectivas espaciais do romantismo e rococó medieval. O longa é uma animação japonesa que adapta o ensaio do século XIX “La Sorcière”, do historiador Jules Michelet.


Ainda, sobre os aspectos mais técnicos do filme cabe mencionar que é um drama histórico erótico que trabalha com imagens estáticas, o que gera um impacto visual completamente distinto do usual no cinema. E apesar do filme ter revivido e tomado bastante força desde 2016 – com a sua restauração –, na época de seu lançamento não foi bem recebido por ser considerado um filme sem muito “capricho”. E esse clássico argumento de “falta de esmero” quando se trata de aplicar uma técnica diferente do comum no cinema… Bem, o cinema cava a própria cova desde muito antes disso.


Agora, ao tema central do filme: mulheres despossuídas de seus corpos. Um tema recorrente é a objetificação do corpo feminino, mas em Belladona a falta de controle sobre o que acontece com esse “objeto” é assunto de interesse e força motriz do longa. E para um filme erótico, trabalhar essa história sombria utilizando-se do sexo como tabu\libertação e enfoque no ponto de vista da protagonista sobre aquela realidade me deixou um tanto pessimista. Já não sei mais se o erótico – partindo do conceito de Audre Lorde em “Os Usos do Erótico” – realmente é um meio de libertação da força e poder feminino. Já que essa força e poder são apenas relativos à compreensão de nós enquanto corpos e mentes. O erótico apenas nos faz repensar como amamos e nos percebemos em toda a nossa potencia de existir. Mas tudo isso ainda parece muito metafísico, pois: como existir no mundo falocêntrico da carne, sendo esse corte de regência do mundo um que a mulher não possui?



É uma existência violentada independente de ter sido tocada a carne ou não. E Eiichi soube traduzir bem esses questionamentos. Inclusive, algo muito difícil de ser bem executado por homens, especialmente no cinema japonês da década de 1970 e no cinema erótico, pois a violência contra a mulher e seu corpo é mais evidentemente enraizada, de modo que se desvencilhe com mais dificuldade na transferência da ideia para a gramática do cinema.

 

Já sobre essas gramáticas e linguagem cinematográfica, é interessante pontuar mais uma vez sobre as imagens estáticas, pois além de serem uma escolha de baixo orçamento e retomarem uma imagética do feudalismo a partir das escolas do romantismo e rococó, a potência visual do estático é muito maior do que a imagem em movimento. Isso se dá devido ao fato de que precisamos – enquanto espectadores – nos inteirar do contexto daquela imagem e sua sequência. Quando falamos sobre imagem estática entendemos que seja necessária certa fabulação do espectador sobre do “todo”. Assim, ele irá construir um “segundo filme” nos espaços visuais e sonoros negativos, robustecendo este primeiro em significados ativamente.


Falando mais intimamente e deixando o teor academicista da crítica posto de parte, eu gostei bastante do filme. Não sei ao certo o que me atrai no cinema erótico além do estudo do olhar, mas há algo de muito especial nesse nicho cinematográfico da década de 1970. Há algo no rock progressivo maluco, na maior presença de imagens estáticas – ou de imagens em movimento tão lentas que se tornam inertes –, nas cores e no modo como o sexo parece sempre muito apaixonado e absorto no momento que me causa certa nostalgia de algo que não presenciei.



E para além dessas emoções e da investigação a pornografia e o prazer cinematográfico, acho que há uma curiosidade pulsante em compreender esse cinema enquanto artefato histórico propagador de ideias.


A Tragédia de Belladona é um filme necessário em qualquer curadoria de mostras feministas e deveria ser menos subjugado, tal como muitos filmes eróticos. Ainda, o filme cabe como uma luva no contexto da votação de um dos projetos de Lei mais sombrios deste país, o PL 1904\2024.: projeto feito por homens e votado por homens, que compõem mais de 80% da Câmara dos Deputados no Brasil, para aumentar o alcance legal da criminalização do aborto e reduzir as chances da progressão do aborto enquanto pauta de saúde da mulher. Enfim, Belladona sou eu e você.


 

Nota da crítica:

 

Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:



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