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Foto do escritorJoão Lucas Casanova

A opressão da miséria no inconsciente humano em Los Olvidados

Duas décadas depois de Un Chien Andalou, um maduro Buñuel retrata a hostilização da miséria nas periferias das grandes cidades, partindo do meio onde é acometida em completude: o inconsciente



Olvidar é uma palavra de língua espanhola, cuja origem remete à palavra latina oblitare - esquecer, perder a lembrança acerca de algo ou alguém. É curioso que seja desse termo que Buñuel intitule seu filme-denúncia sobre os mais desvalidos socialmente; o esquecimento, de todas as vias possíveis para se abordar essa história, parte de uma visceralidade ainda mais exposta, pois subentende uma parcela de culpa da sociedade, pela omissão e desprezo para com estes seres que se perderam na lembrança da coletividade social. O esquecer a que se refere o título do filme, compreende um ato praticado conjuntamente pela sociedade, de maneira quase que natural. Um abandono tão propício, e que se relaciona a outro significado da mesma palavra que intitula o filme: olvidar enquanto perda da sensibilidade, e por extensão, perda de uma compaixão que nos deveria ser inerente.


As marcas deixadas pela miséria são parte intrínseca das vidas nas grandes cidades, como é exposto pelo longa logo em seus momentos iniciais. Uma narração que denuncia a realidade sofrida pela parcela mais vulnerável da população, é sobreposta nas imagens de grandes monumentos e símbolos de metrópoles mundiais: Torre Eiffel, Big Ben, Manhattan e por fim, Cidade do México, palco dos acontecimentos de Los Olvidados. Esse contraste audiovisual infere uma relação que Buñuel traça de maneira evidente em sua sutileza - a da opressão do capitalismo e a miserabilidade social. E é da naturalização da miséria provida dessa relação, que o diretor traça um panorama sobre o esquecimento praticado pela sociedade para com esses indivíduos; o esquecer do que nos torna humanos e iguais entre si, ao mesmo tempo que banaliza a ausência dos direitos básicos de toda condição humana, em virtude de um sistema que cada vez mais implode contra si mesmo.


A introdução explicativa surge não para subestimar a inteligência do espectador, mas para evidenciar o caráter realista da obra - “Esse filme mostra a vida real. Não é otimista”, como é dito pelo narrador logo no início. Firmado o compromisso com a fidelidade na representação dessa condição social, Buñuel agora se permite retratar essa história com toda intensidade narrativa que lhe é característica, expressando a dor da opressão pela natureza em que é acometida: a do inconsciente. Essa relação do diretor com o interno da psique humana, remonta à fase inicial e mais surrealista de sua carreira, e evidencia uma ligação fundamental de seu cinema com a dominação do interno sobre o externo, visível em obras essenciais de sua filmografia, como o curta Un Chien Andalou e o longa L'Âge D’Or.



O surrealismo mais “puro” presente nas primeiras produções de Buñuel nunca se esvaiu propriamente, mas metamorfoseou-se em traços e influências que compuseram parte marcante de suas características como autor. As transgressoras obras do diretor durante as décadas de 20 e 30, faziam parte do contexto das vanguardas europeias que se introduziam na arte cinematográfica do período. O cinema surrealista, embora não tenha se iniciado com Buñuel, encontrou no diretor seu mais importante representante, muito pela revolução que obras como Un Chien Andalou e sua subversiva narrativa representavam para a linguagem cinematográfica, mas também pelo caráter social genuíno a essas produções - como críticas à moral ocidental e à ascensão do nazifascismo -, e que foram intensificadas perante o público, graças ao poder de uma “ilogicidade” capaz de externalizar o que há de mais profundo e simbólico no inconsciente humano.


A subversividade com a qual as primeiras produções de Buñuel tratavam temas sensíveis da sociedade, como as hipocrisias da Igreja e da burguesia, já demonstravam um autor cuja percepção social influenciava toda sua produção artística. O caso mais evidente dessa influência, aliada à subversão narrativa, está presente no curta de Buñuel de 1933, Las Hurdes, tierra sin pan, onde o diretor utiliza da farsa para exponenciar uma verdade. O curta, que emula o formato documental, parte de uma premissa realista para evidenciar uma mentira com cara de verdade e uma verdade com cara de mentira; coisas que, no universo de Buñuel, frequentemente coexistem. O retrato da miséria exacerbada realizado pelo diretor, se situa na dubiedade entre o real e o surreal, que é tão presente na sua filmografia posterior, ironizando os aspectos do farsesco no que é fato, e intensificando o que há de real em toda farsa - aspectos ambivalentes e que só se fazem existentes na narrativa cinematográfica.


Embora tematicamente se assemelhe ao curta Las Hurdes, o longa já pertencente à fase mexicana de Buñuel, Los Olvidados, de 1950, vai apresentar o que caracterizo como um surrealismo “amadurado”, onde ocorre a inflexão de real e surreal como no curta de 1933, mas com a ausência de um teor satírico, inerente ao ato de relatar a miséria por um viés de farsa, como ocorre em Las Hurdes. Talvez por isso, há essa autoafirmação do longa como factível logo em sua introdução - o que naturalmente o remete à longas neorrealistas, com a presença de narrações introdutórias que evidenciam o compromisso fílmico com a representação da realidade. Características marcantes do neorrealismo italiano se fazem presentes no longa de Buñuel, embora caracterizá-lo como tal pareça fugir do que compreende o filme mexicano em toda sua conjuntura narrativa, além de claro, o diferente contexto politíco que eternizaram o movimento cinematográfico.



O filme de Buñuel sobre a vida de jovens e crianças de um bairro pobre da Cidade do México acaba por se tornar um dos mais viscerais retratos da miséria e do abandono. Não só pelo realismo social da obra, como também pela valorização do inconsciente como parte fundamental da vida humana, e onde a opressão exercida pela miséria realiza seu maior dano. No longa, um grupo de jovens vive a maior parte do tempo nas ruas, cometendo pequenos delitos para se alimentarem. Uma parte vive nas ruas por não possuir mais os pais, outros com os pais vivos, mas que foram abandonados ou negligenciados em suas próprias casas. O grupo se anima quando Jaibo, o integrante mais velho e líder do grupo retorna, após fugir do reformatório.


As situações de desamparo social expostas por Buñuel durante todo o longa, surgem como uma representação realística da vida como ela é, e por consequência disso, possuem em si uma tristeza tão legítima, tanto de um mundo jogado à escuridão, negligenciado pela esfera política, e tratado com descaso pela sociedade; traços que Buñuel capta e filma com tanto simbolismo - talvez a única forma de expressão capaz de atingir o íntimo humano de maneira universal. Assim, quando a trama se vê envolta em violência e miséria extrema, como na vida real, o longa filtra todos acontecimentos por um aspecto inconsciente; a internalização do que o externo não é capaz de solucionar. Logo, o que antes era apenas um retrato das mazelas visíveis de uma deteriorada condição social, torna-se a denúncia de uma opressão que corrói essa parcela pobre por dentro, e que potencializa a miséria a que são acometidos externamente.


A simbologia de Los Olvidados, está intrinsecamente ligada aos traços surrealistas de Buñuel enquanto autor, mesmo que se difira da abordagem em sua totalidade. A importância que o diretor atribui à linguagem dos sonhos, presente desde seu primeiro curta (o já citado Un Chien Andalou), é como o íntimo desses personagens são expostos ao público. A assimilação da realidade pelo nosso inconsciente, durante o ato de sonhar, manifesta uma compreensão acerca do interno humano, mesmo quando o externo tenta o suprimir. Talvez, em Los Olvidados, seja onde essas influências freudianas no cinema do diretor se apresentam em sua natureza mais visível para o público.



Por exemplo, a conhecida cena do pesadelo, na qual o personagem Pedro chega escondido em casa após um acontecimento marcante e violento da trama, e tem um pesadelo onde, de maneira onírica, se confundem o medo, a fome, a ausência do amor, e toda opressão que a vulnerabilidade social infere ao interior do personagem; sentimentos e anseios que se materializam durante o sonho na figura de uma galinha, que vai ser utilizada no resto do longa pelo diretor como um retorno aos problemas sucateados pelo inconsciente, e que gritam de forma incessante para dali sair. Essa importância que o longa atribui à linguagem do psicológico humano, funciona como o ponto que conecta todas as causas com suas respectivas consequências - e que externaliza em símbolo, o interno intangível à realidade cognoscível.


É interessante como o olhar que o diretor direciona para a psique de seus personagens, tem no espectador também um efeito inverso, o de maior compreensão do que ocorre de maneira externa a eles. É essa relação característica de seu cinema que intensifica toda uma capacidade de expressão, e que também humaniza a representação realística da miséria. Os aspectos simbólicos do longa surgem, a priori, como uma forma de representação do que não é visível ao espectador - e muitas vezes, o que não é visível aos próprios personagens da trama. São elementos que transcendem a narrativa justamente por serem parte intrínseca da mesma; é esse campo vasto e imprescindível que Buñuel mira, e bem como seu próprio formato, o simbolismo quando adentrado no imaginário do espectador, atinge grandeza de proporção inestimável. A presença dessas características surrealistas, mesmo que não estejam em sua compleição inicial - com o transgressor uso da linguagem cinematográfica e uma desvirtuação da linearidade narrativa -, partem do mesmo preceito de evidenciar o que há de real em cada surrealidade; e adquirem aqui uma tonalidade maturada, por utilizar de todo o aparato simbólico, em virtude de um mais exposto caráter social: o do cinema como denúncia de uma realidade sub-humana.


A violência presente nas situações de desamparo social e que permeia o meio onde esses jovens convivem diariamente, compreende todas suas ramificações e se integra na raiz dessa sociedade. Talvez, o aspecto que mais tenha me fascinado, em um primeiro momento, seja justamente uma tridimensionalidade na representação dessa realidade. Não há uma violência banal, há uma violência desoladora e ponto. O caráter tridimensional da obra compreende toda a forma como é solidificada essa estrutura social; são violências que se repetem de maneira inconsciente, e embora Buñuel exponha as problemáticas desses personagens - como no caso da mãe de Pedro, que se mostra incapaz de demonstrar seu amor ao filho -, nunca os inibe da conjuntura social anterior a eles, principal responsável pelos problemas estruturais que reproduzem e passam adiante na criação de seus filhos. É um filme que nunca se limita a dar explicações fáceis para esses atos, pois são problemas de complexidade tamanha, cujo início remonta ao nascimento da sociedade, e que se agrava no descaso desse sistema para com a vida humana. Porém, mesmo não buscando retratar um jogo de cartas marcadas, o filme ainda em sua introdução aponta que a solução está “nas mãos progressivas da sociedade”, porque embora seja um problema de grande magnitude, sua solução está na existência do direito à vida digna, para todos que a ela foram renegados.



Todas essas particularidades narrativas se conjuntam na denúncia do que há de mais banal na própria estrutura do sistema: a miséria. É essa ambiguidade que torna o longa tão indigerível mesmo em sua urgência; de uma amargura que machuca e desampara qualquer esperança de progresso social - esperança essa natural a todo ser humano, e que se faz presente na compaixão para com um igual em sofrimento. Mas são expectativas criadas em maré contrária ao viés evidenciado pelo próprio longa ainda em sua introdução: “Esse filme mostra a vida real. Não é otimista”. De certa forma, é nessa fé do espectador pela capacidade das coisas melhorarem, que Buñuel deposita a semente onde sua mensagem se mostra mais longeva. Uma soturnidade que nunca soa demasiada, soa trágica pois em momento algum adquire traços de uma realidade que não a nossa, a mesma que vemos todos os dias ao olhar nas ruas das grandes metrópoles, com a fome e a insegurança tomando feitio na figura de cada ser humano.


É natural que olhemos Los Olvidados como um filme-denúncia à situação de miserabilidade vivenciada por essa parte da população, porém, mais do que isso, é uma denúncia ao esquecimento, à omissão, um grito de recusa à normalização do que um sistema desigual tenta empurrar como normalidade. Para que nunca, nem por um instante, possamos esquecer da existência daqueles que vivem como esquecidos. Sempre lembrar, jamais esquecer.


 

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